DÚVIDAS

ARTIGOS

O nosso idioma

«Não sou daqueles que...»

«Não sou daqueles que recusa», ou «não sou daqueles que recusam»? Eça de Queirós é «um dos escritores que contribuíram para o prestígio da literatura portuguesa», ou Eça de Queirós é «um dos que contribuiu»? Em artigo publicado no Diário do Alentejo de 6 de Março de 2009, Maria Regina Rocha socorre-se de um saboroso trecho literário do escritor brasileiro Fernando Sabino para voltar a um tema recorrentemente questionado.

 

 

Eça de Queirós é «um dos escritores que contribuíram para o prestígio da literatura portuguesa», ou «um dos que contribuiu»? O verbo da oração relativa vai para o singular, ou para o plural?

Antes de responder a esta pergunta, não resisto a transcrever uma página da obra A Companheira de Viagem, de Fernando Sabino, um grande escritor brasileiro, que se notabilizou sobretudo como autor de crónicas, contos e pequenas histórias. Lembro que o registo é o do português do Brasil.

 

«Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

– Senhor Presidente: não sou daqueles que...

O verbo ia para o singular, ou para o plural? Tudo indicava o plural.

No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

– Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem – que recusa? –, ele facilmente caía nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

– ... embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, não sou...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que as gramáticas registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

– ... daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

– Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido logo de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:

– Não sou daqueles que, dizia eu – e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:

– Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

– ... não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

– Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

– Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

– Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

– Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem – e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.

– Eu? Mas eu não disse nada...

– Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia.

– Que é que você acha? – cochichou um.

– Acho que vai para o singular.

– Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador prosseguia na sua luta:

– Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...

– Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

– Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência depois de mais de vinte anos de vida pública...

E entrava por novos desvios:

– Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor Presidente e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara. Não havia mais por onde fugir:

– Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito e desfechou:

– Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam:

– Muito bem! Muito bem!

O orador foi vivamente cumprimentado

 

«Não sou daqueles que recusa», ou «não sou daqueles que recusam»? Era este o dilema do orador.

Nesta situação, o verbo recusar vai para o plural, concordando com o sujeito que, cujo antecedente é o demonstrativo aqueles, ou seja, um termo no plural. Pretende o orador dizer que não pertence («não sou daqueles») ao grupo daqueles que recusam: há aqueles que recusam, mas ele não pertence a esse grupo: o verbo que diz respeito ao orador está no singular (não sou), o que diz respeito aos outros está no plural (recusam).

E, quanto a Eça de Queirós, pertence ao número de escritores (é um deles) que mais contribuíram para o prestígio da literatura portuguesa: é um dos escritores (verbo ser no singular), mas não foi o único, houve outros que também contribuíram (plural).

Fonte

In Diário do Alentejo do dia 6 de Março de 2009, na coluna A Vez… ao Português.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa