Ser revisor de textos como principal ocupação profissional é ter uma vida diferente. É ver menos pessoas do que na maior parte dos outros trabalhos. É estar em casa grande parte do tempo. É não ter horários, mas prazos. É gozar do prazer de passar os dias a ler e ainda ser pago por isso. Um revisor é, por imperativo profissional, um leitor omnívoro. Um especialista das engrenagens da língua, desde as suas estruturas maiores até às suas partículas mais ínfimas, aos seus ossinhos e parafusos.
Quem se aventura na revisão deve estar preparado para conviver com a ingratidão. Porque o revisor sabe o quão diferentes são os livros antes de passarem pelas suas mãos. E, contudo, eles têm apenas um lugar minúsculo reservado para si na ficha técnica (quando têm). Ao contrário de um tradutor, o nome do revisor não constitui um chamativo da obra, apesar do acréscimo de valor que dá aos livros que cinzela.
O revisor é, no fundo, o escritor da sombra, o duplo do actor de cinema que entra em cena quando este não está preparado para o salto. Dependendo da margem que as editoras e os autores lhe concedem, dependendo também do seu perfil – mais ou menos intervencionista –, ele pode ser um mero reparador de erros ou alguém que reescreve frases, embelezando-as. Sim, o bom revisor deve amar as palavras. Não ser apenas um engenheiro ou um contabilista das mesmas. Só amando as palavras, as poderá lascar, aparar, envernizar, polir, perfumar.
Seria interessante publicar-se um livro de um grande escritor em estado de pré-revisão, de modo que os leitores compreendessem a importância do revisor.
São necessárias três características para a execução da revisão. Primeira: possuir-se uma boa cultura geral. Quanto mais assuntos se dominar, mais erros de conteúdo se detectará (algumas editoras contratam um revisor científico, à parte do revisor linguístico, para obras mais especializadas). Segunda: ter-se uma elevada capacidade de concentração. Ao rever, é preciso ler simultaneamente com um duplo olhar: o olhar da forma, atento à vírgula que falta, e o olhar do conteúdo, que exclama «eureca!» quando a personagem que era coxa, a certa altura da narrativa, desata a correr mais do que as outras. Um revisor assemelha-se, neste sentido, a um trabalhador numa torre de controlo – a sua concentração tem de ser absoluta e ininterrupta, porque a mínima distracção será fatal. Terceira: conhecer-se as leis e os processos da linguística, e, ainda assim, manter-se sempre a humildade de consultar todos os manuais de gramática e todas as doutas opiniões.
Há um corolário nocivo a que dificilmente qualquer revisor escapará: o seu olhar de leitor será contaminado pelo seu olhar de revisor. A fruição da leitura ressentir-se-á do seu sempre atento olho de lince.
Às vezes, penso que a profissão que mais se aparenta com a do revisor é a do árbitro de futebol. Estranha comparação, dir-se-á em primeira análise. A verdade é que o único aspecto visível do trabalho de ambos é o erro. Dá-se pela existência de tais ofícios apenas quando eles falham.