DÚVIDAS

ARTIGOS

O nosso idioma // O português em Angola

«”Mas contudo” não faz mal…»

 Mas e contudo não têm de ocorrer ao mesmo tempo na mesma frase, adverte Edno Pimentel numa crónica publicada em 17/10/2013 na coluna "Professor Ferrão" do semanário angolano Nova Gazeta.

 

«Para nós faz mal, sim. Onde já se viu o nosso corpo desaparecer da morgue?», indignada, reivindica a tia do defunto que a família julgava já ter enterrado. Como morreu de uma doença contagiosa, os familiares decidiram pagar para os funcionários da casa mortuária lavarem o corpo.

A confusão começou quando o irmão mais velho do malogrado indicou o número da gaveta aos senhores, que normalmente tomam algumas foias de quimbombo1 ou uns cálices de capuca para ganharem coragem, confundiram o número da gaveta, prepararam o corpo errado e selaram a caixa, de forma a evitar qualquer contágio.

Durante o velório, os familiares não acreditavam que a morte [tivesse] chegado para buscar o seu ente. Vergavam-se diante do corpo já bem selado, a esposa e a mãe, em jeito de despedida, beijavam o caixão transmitindo todo o seu carinho e manifestando o seu desagrado e a saudade que acabava de se instalar para sempre. «Ai wé, monami yé»2 . E o funeral aconteceu.

Dias depois, os familiares foram surpreendidos porque o corpo que supostamente já tinha sido sepultado ainda estava no necrotério.

«Vocês não viram que o corpo que levaram era de uma senhora?», pergunta a filha da senhora cujo corpo foi enterrado por engano. «E agora como é que vamos resolver este problema?», aumentava ainda mais a dor da órfã por perder o direito de poder enterrar a própria mãe.

«Nós errámos, mas contudo não faz mal», assegurou um dos responsáveis da instituição. «Como o vosso corpo já foi enterrado, levem este só para simbolizar», sugeriu.

«Nunca! O erro é vosso e nós é que pagamos. Isso só aconteceu porque a morgue não é organizada. Como é que um corpo desaparece e agora …?»

A coisa é séria e é preciso termos cuidado com o que dizemos, porque podemos incorrer a erros ainda maiores, como é o caso de “mas contudo…”

Ambas são conjunções coordenativas adversativas, com o mesmo valor semântico, e indicam uma relação de oposição, contraste, etc. Deve, por isso, evitar-se o uso simultâneo de «mas contudo», do mesmo modo que não se deve dizer «contudo todavia» ou «não obstante entretanto».

1 foias = «latas»

2 «Ai, ai, meu filho, ai, ai!»

Outros textos de Edno Pimentel sobre o português em Angola

Fonte

In jornal Nova Gazeta, de Luanda, publicado em 17 de outubro de 2013 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa