Aproveitando o vocabulário característico do português falado em Angola, Edno Pimentel, assinala uso incorreto de simpatizar como verbo reflexo («simpatizei-me com ela», em vez do correto «simpatizei com ela»). Crónica publicada no jornal luandense Nova Gazeta, em 12/11/2015.
É provável que seja por indução sinonímica. Simpatia e afeição têm significados semelhantes e, acredito, por isso, na hora de transmissão dos afectos, as pessoas quase que não se importam com a forma e o funcionamento das palavras. E usam-nas apenas. Parecem perder o raciocínio. E falam só.
Mas é claro que isso não impede que a comunicação flua. Afinal, aos falantes pertence a língua. O que é incorrecto hoje pode não ser amanhã. O que tem um significado hoje pode ter outro daqui a alguns anos. O que não quer dizer que nos devamos comportar, de modo consciente, como se existíssemos num mundo onde as regras não se fazem sentir.
Nos tempos em que nos comunicamos, nós, os da plebe, inventamos vocábulos, alteramos a forma de vocábulos, e recorremos várias vezes a vocábulos que, mais tarde, por força do uso, passam a fazer parte do nosso vasto universo lexical.
Quem diria que em Angola, entre 2000 e 2015, nasceria o bebe-e-me-deixa1? Que as pessoas comeriam magoga2? Ou que, no táxi, nos sentaríamos na baúca3? Ou ainda que as mamoites4 e os papoites5 se zangariam com os "kizangos"6 que os "ndengues"7 levam para os "cubicos"8? Quem diria? Os kotas9 ficam malaikes10. São bué de mambos que, nos momentos de banzelo11, não acredito que existem, mas estão aí.
No entanto, a língua tem níveis e é preciso que todos saibamos disso, se possível, para que nos possamos posicionar conforme as circunstâncias da comunicação. As normas não querem saber das nossas simpatias pelas coisas. A gramática não encara as coisas com amor. Não há subjectivismos.
Os registos normativos actuais da língua portuguesa dão conta de que as pessoas se devem simpatizar com outras pessoas, porque simpatizar não é um verbo que apresente a conjugação pronominal. Pode até soar giro dizer «simpatizei-me com aquela moça», mas isso constitui, à luz dos preceitos reguladores da língua, uma incorrecção.
As pessoas não se simpatizam com (alguém), simplesmente simpatizam com (alguém). Simpatizar, sem o pronome se reflexo, quer dizer «ter simpatia (por algo ou alguém); sentir afeição, inclinação ou interesse por (alguém)». Portanto, a forma correcta deve ser «simpatizei com ela» e não «simpatizei-me com ela.
1 bebe-e-me-deixa: gasosa ou refrigerante em garrafa de meio litro ou mais (cf. nota 19 de "Um cubico sem aspas").
2 magoga: sandes de frango frito (cf. nota 17, idem)
3 baúca: «lugar pouco cómodo no candogueiro [=táxi] e geralmente, tem um preço mais reduzido que os demais lugares do candongueiro» (Teresa Camacha Costa, Umbundismos no Português de Angola, tese de doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, 2015, pág. VII).
4 mamoite: mãe (cf. blogue Linguagem Xtru).
5 papoite: pai (cf. idem).
6 kizango: (ou quizango): tentação; encantamento natural» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, em linha na Infopédia)
7 ndengue: «criança, rapaz, rapariga» (idem)
8 cubico: »casa muito pequena, casebre» (idem).
9 kota (ou cota): velho.
10 malaike (ou malaique): zangado, preocupado; coisa que não presta (cf. nota 11 de "Um cubico sem aspas").
11 banzelo: provavelmente de banzelar, «pensar, matutar» (cf. nota 15, idem).
Crónica da autoria de Edno Pimentel e publicada na coluna "Professor Ferrão" do jornal luandense Nova Gazeta, em 12/11/2015. Manteve-se a ortografia conforme a norma ainda aplicada em Angola, a qual é anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.