No Ciberdúvidas da Língua Portuguesa de 19 de fevereiro de 2007, Maria Regina Rocha explicou a diferença entre demais e «de mais». A explicação foi clara, e nada venho aqui acrescentar. Junto-me apenas num reforço de chamada de atenção para um erro que subsiste.
Demais é uma forma pronominal ou adverbial. No entanto, o erro não é novo. Os autores1 da atualização do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da autoria de António Morais Silva, edição que consagra a ortografia aprovada em 10 de agosto de 1945, referem expressamente:
DEMAIS. Pron. indef. Outro, outra, outros, outras. [a]
Adv. Além disso. [b]
DE MAIS. Loc. adv. Em demasia; em excesso.[c]
Não poderiam, pois, ser mais claros.
Simplificando um pouco os exemplos da obra citada, poderíamos dizer:
[a] «As alunas estrangeiras permaneceram na sala, as demais saíram.»
[b] «Eles gostam muito de passear, demais têm muito tempo livre.»
[c] «Ele comeu de mais e ficou doente.»
A manchete da notícia aqui em apreço deveria dizer: «Os burocratas que falam de mais.» Isto é, os burocratas que falam em demasia, em excesso.
Compreende-se esta dúvida ou este erro? Na minha opinião, não. A regra é fácil e é clara. No entanto, como acontece com muitas regras, tudo se torna fácil a partir do momento em que as sabemos. O problema é mesmo conhecer a regra.
No entanto, não queria terminar sem explicar o que suponho estar na raiz da dificuldade. É que os dicionários dos finais do século XIX e início do século XX2, por exemplo, contemplavam a forma demais como significando «em excesso». A alteração ortográfica deu-se com o acordo de 1945, e foi então que se passou a escrever «de mais» para o significado de «em excesso». Não se conhecem estudos preparatórios, mas creio tratar-se de uma forma deliberada de estabelecer a diferença entre o pronome/advérbio e a locução adverbial, restringindo esta última ao significado de «excesso», à semelhança de «comer de menos», por exemplo. Mas nada tem que ver com o atual acordo ortográfico, pois esta distinção é feita em 1945. A confusão dá-se, pois, com a ortografia de 1911.
1 Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado.
2 Diccionario da Lingua Portugueza, da autoria de Antonio de Moraes Silva, por exemplo, edição de 1889, ou Moderno Dicionário da Língua Portuguesa para os Estudantes e para o Povo, da autoria de Francisco Torrinha, 7.ª edição, sem data, mas com a nota: «Publicado de acôrdo com a ortografia oficialmente adoptada por decreto de 1 de Setembro de 1911 [...].»