Crioulos nossos - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Crioulos nossos
Crioulos nossos
Evocação de dois cabo-verdianos lisboetas
 
«(…) Si bô screvê me/ M’ta screvê be/ Si bô skecê me/ M’ta skecê be/ Até dia ki bô voltà»…Se escreveres, escrevo-te, se esqueceres, esqueço-te, até ao dia que voltares… E se não voltares? Tradução do canto: «Sodade». Mais lisboeta é impossível.(…)»
 

 

No dia em que as cinzas de Bana (1932-2013) partiram da sua cidade, Lisboa, eu pensei na sua cidade, Mindelo, de onde elas voltariam a partir, mar fora. Misturar mundos era a homenagem que eu lhe prestava.

Lembrei-me, ainda, de uma canção dele que me empurrou a ir ter comigo. Para a minha Luanda, 1967, 68, por aí, num musseque, quintal de terra batida, sombra de mulemba grande, farra de domingo à tarde – eu dançava. Dois jovens luandenses, branco e negra, comandados pelo violão e cavaquinho de dois cabo-verdianos. O meu mundo desejado, círculo íntimo, imenso.

Verão de 2013, Bana morreu, pois. O que me fez, então, recuar trinta anos, rua do Sol ao Rato, até ao Monte Cara, casa de mornas, Lisboa. Cantava ele: Resposta d’ segredo cu mar, do B.Leza, a canção que me levou à adolescência em Luanda.

Se foi essa morna – que abre assim: «Um staba xintadu mim sô, mim sô…» ¹– eu mentia, nem estava sentado, nem só, estava com um amor, um calor, um cheiro, dançando.

«Mim sô, mim sô», solitário, mas com o mundo que me explicava e explica. E me levou a hoje, ao nosso jornal, Mensagem, agora também com varanda (nominho: varandinha) em crioulo. Sozinho, quer dizer, pensando no meu mundo à volta, como deve ser, como só ele sabe, misturando-se.

Bana, gigante, de pé, talvez para nos remeter ainda mais a nós, mesmo. Diz-se, lenda, que quando aportou a Lisboa ele viu uns sapatos na montra. Queria esses. E o tamanho?, perguntou o sapateiro. «Quarenta e tal». E o tal, é?, insistiu o comerciante. «Dóze.»

No Monte Cara, naquele dia distante, gigante e voz de veludo, ele continuava a morna, «mim longi di bô sem sabe cma um staba», longe de ti sem saber como estavas… Encostei-me à cadeira. Foi quando a vi, noutra mesa. A jovem lisboeta branca fechou os olhos para estar consigo própria. E o corpo dela começou a menear-se, lentamente como a morna pedia: «Um tchora sodade di bô nha cretcheu», chorei de saudade de ti meu amor…

E quando Bana se calou, nem eu nem ela aplaudimos, estávamos demasiado connosco, e ela ainda de olhos fechado. Confirmei, também ela tinha ouvido um cantor da sua cidade, um compatriota.

Então, verão de 2013, levei as cinzas de Bana ao Mindelo. Levei? Por favor, entendam, eu estou a falar de muito mais e de muitos mais que eu.

Um dia, lá trás, alguém de mim partiu e levou saudades, chegou a uma pequena ilha deserta, São Vicente. Logo depois os netos do viajante já tinham sodades, estavam em São Vicente, piquinino, havia um porto, Mindelo, mais porto não podia ser, cruzamento, restos enferrujados de barcos cansados na praia, canal e ilha que se deixava ver, em frente, Santo Antão. Longe, mas sempre destinos, Luanda, pela esquerda baixa, Rio de Janeiro, contornando à direita.

Foi do Mindelo que voltaram a partir as cinzas de Bana (1932-2013) relançadas ao vento do mundo. Como disse o outro, ele era o meu norte, sul, meu leste e oeste. O sentido da minha vida. «Mar mansinho, cum lua cheia lumiam caminho»², diz outra canção dele.

Cinco anos depois, morreu-me a Lena, a nossa Lena. Outra aportada em Lisboa, fronteiras perdidas, como anda a ensinar, há muito, o José Eduardo Agualusa.

A médica Helena Lopes da Silva (1949-2018) era da ilha de Santiago. De geografias variáveis, como é próprio dos fronteiras perdidas, e, como tantas vezes acontece com estes, ela era de um amor intenso por lugares e gentes diferentes. Tinha muitos irmãos, de vários matizes à volta do castanho, e até uma irmã ruiva.

Acontecia muito à Lena precisarem dela. As pessoas não são parvas, sabem a que porta bater, tal como há Lisboas a aportar. Mas, numa madrugada, a Lena partiu de repente.

A casa da Lena encheu-se. Na sala, um óleo do Chichorro, outro fronteiras perdidas, moçambicano, mostrava quatro mulheres abraçando-se, era dramático e belo. Na sala era o que mais havia, gente abraçando-se, e era tão triste. Aquele quadro tinha dedicatória do pintor: «Para a Lena com todo o coração.» E quando o coração se parte? O moçambicano Amioto estava derrubado num sofá. Os bigodes revirados do cabo-verdiano Humbertinho tinham esmorecido.

Numa mesinha havia uma velha foto de um crioulo grande da ilha de Santiago, abraçado a duas filhas, a Auta e a Lena, elas de cabelos afro, à Angela Davies, anos 1970. Um dia, na cidade da Praia, a Lena fez de conta que tínhamos de passar por uma pequena rua, só para eu ver a placa: «Rua Sr. Pantchol, João de Deus Lopes da Silva», seu pai. Ele fez letras para serem sincopadas pelo clarinete de Luís Morais.

No velório, a luandense Guigui Gomes pegou numa foto e sussurrou-me: «Eles nunca se encontraram, mas o meu pai iria dar-se tão bem com ela…» O velho Maurício Gomes tinha sido outro fronteiras perdidas, angolano, nacionalista – tanto mar e tanta história a juntar gente que nunca se encontrou.

A Lena juntava-nos nas casas em que viveu por Lisboa. Tocatinas, chamava ela às noites em que apareciam a Maria Alice e o Tito Paris e antes deles o Bana e a Cesária.

Os vizinhos entravam, pretextando o barulho, para entrarem também eles um bocadinho. A casa da Lena era um museu onde ardia, para não desaparecer, o mundo misturado que se quis – tão orgulhosos estávamos do nosso passado, crendo, ainda hoje, que é o futuro.

Tantas noites tivemos, na casa da nossa Lena, a levantar voo para dentro de nós próprios. Na sala, uma serigrafia sem cores exceto as que emprestamos aos homens: dois casais, um branco e outro negro, à volta de um transístor, sintonizando as vozes da liberdade. Sinais para os que se conheciam dos tempos de ânsia por nos ouvirmos.

A Lena era de causas, e era intransigente. Pelas mulheres era uma leoa. Pelos sem, generosa. Pela seleção portuguesa, uma chorona. Por Cabo Verde, uma empolgada.

Um dia, na ilha de Maui, nadávamos e ela disse-me: «A água de Cabo Verde é melhor.» Anos depois, nadando devagarinho, numa praia do Sal, ela aproximou-se de mim: «Não é?» Adivinhei o retomar da conversa: «É, Lena, é melhor do que no Havai.» O Chichorro ofereceu-lhe outro quadro: dois homens lutando na rua. Já te ouvi, Lena, nada será dado, tem de ser conquistado.

Pela casa, fotos da Lena e os seus, o sol e o à volta, e também dela com bata branca ou de bata verde de cirurgiã, professora do tanto que sabia, sempre no centro, sempre a mandar, com alunos ou jovens médicos.

Ela sabia que ela era mais do que ela, era um símbolo, parte de uma conquista que se ia fazendo. Muitos só viram isso, e só por isso já ela era grande.

Dois Presidentes, o português Marcelo Rebelo de Sousa e o cabo-verdiano Jorge Carlos Fonseca, foram à [Faculdade] de Medicina, no Hospital de Santa Maria [em Lisboa], agradecer o que deviam. O sobrinho Nuno, campeão olímpico, falou-nos do que foi o passar dela por nós, convicta, generosa e forte, como os melhores golpes de judo.

Muitos amigos viram a doutora Lena, sempre disponível – os amigos, pensando que era só para eles, mesmo em dores ligeiras –, a abandoná-los nas urgências do Santa Maria, para ela ir agarrar na mão de uma desconhecida velha solitária e com esta ficar.

Lena querida, foi bom, tão bom, ser teu amigo. Mas, mais do que eu, quem soube de ti foi a velha solitária. Cidadã, foi tão bom ser teu concidadão.

Esta homenagem a Bana e Lena, nossos lisboetas – nesta Mensagem contada agora também em crioulo –, é para ser ouvida com outra viagem, tocada e cantada.

As duas histórias acima têm Luís Morais a tocar no cais do Mindelo, na década de 1950, quando um navio partia, carregado de flagelados do vento leste, para as roças de São Tomé. A dor do clarinete não precisava de tradução. Mas oiçam Cesária Évora: «Quem mostrabo ess caminho longe? Ess caminho pa São Tomé³»…

E mais um bocadinho: «Si bô screvê me/ M’ta screvê be/ Si bô skecê me/ M’ta skecê be/ Até dia ki bô voltà»…

Se escreveres, escrevo-te, se esqueceres, esqueço-te, até ao dia que voltares… E se não voltares? Tradução do canto: «Sodade».

Tão nosso, mais lisboeta é impossível.

 

’ «Eu estava sentado,  sozinho.»

² «Mar mansinho, com lua cheia, ilumina-me o caminho.»

 ³ «Quem te mostrou esse caminho longe? Esse caminho para São Tomé.»

 

CfMensagem faz jornalismo em crioulo, pela primeira vez nos media em Portugal + "Jornalismo na kriolu ê um kumeço di narrativa ki ta ben kaba ku um monti di preconceito” – sim, isto é um título em crioulo + Dino D’Santiago: «A minha Lisboa é uma cidade aculturada e tem os olhos mais abertos. É o epicentro da cultura que se misturou de forma incrível» A origem do crioulo, e a sua importância em Lisboa, a mais crioula das cidades europeias + Como está-tua ex-celência?

Fonte

Crónica* da autoria do jornalista Ferreira Fernandes, in Mensagem de Lisboa, de 2 de dezembro de 2021.

Sobre o autor

Ferreira Fernandes (Luanda, 1948) é um jornalista português, tendo colaborado com o Diário Popular,  Tal & Qual, Visão, Sábado e Público, entre outras publicações. Recebeu diversos prémios de reportagem, entre os quais o Prémio Bordalo – Jornalista do Ano (Casa da Imprensa) e o prémio Jornalista do Ano (Clube de Jornalistas do Porto).  Ex-diretor do Diário de Notícias. Autor, entre outros livros, de Os Primos da América, Lembro-me Que e Frases que Fizeram a História de Portugal.