«A verdade é que, além das nossas crenças ou superstições e das palavras que repetimos como se fossem mantras, o novo só depende de nós [...].»
A maior parte das pessoas, mesmo as mais céticas, tem alguma superstição. Nas festas de final de ano, não é raro que sigamos as nossas tradições culturais, regionais e nacionais, as memórias familiares e, é claro, os nossos desejos e projeções para o futuro. Isso se reflete na organização das ceias, nas vestimentas, nos presentes e, especialmente, nos desejos de felicidade para nós mesmos e para aqueles a quem estimamos. Na festa de Ano Novo, a língua se transmuta em poesia e assume o poder de alterar futuros, de vislumbrar novos começos e grandes conquistas. Assim, palavras como paz, saúde, sucesso, felicidade, luz, alegria, bênção, fé, sorte ganham renovada força e são, em si mesmas, amuletos para os tempos que virão. Ao lado dos desejos manifestos na língua, em suas variadas formas de expressão, temos sempre alguma superstição ou ideia sobre coisas e acontecimentos que podem nos trazer bons augúrios para o novo ano que vai chegar. Na grande comunidade de língua portuguesa, muitas são as tradições e variadas as influências culturais que se materializam em receitas de felicidade. Afinal, se bem não faz, mal também não, certo?
No Brasil, além da grande tradição de se vestir de branco, que simboliza a paz, a alegria e a renovação, quem está perto do mar não pode deixar de pular sete ondas, para se livrar das cargas do passado, e tomar um bom banho de mar, prática também comum em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. As tradições afro-brasileiras também estão muito presentes nesse período do ano, e muitos de nós tomamos banhos de ervas, de sal grosso e de pipoca, como poderosos adstringentes da alma. Além disso, não podem faltar as flores e a alfazema para a rainha do mar, Iemanjá, como agradecimento e pedido de bençãos para o novo ano. Há, ainda, a tradição das cores das vestimentas íntimas para atrair bons fluidos. Amarelo-riqueza, vermelho-paixão, branco-paz, rosa-amor. Em Portugal, a vestimenta íntima azul é tradição para atrair boa sorte, mas não veremos as pessoas vestidas de branco, como no Brasil e em Angola, algo pouco desejável no inverno europeu. Os portugueses também costumam fazer muito barulho na virada do ano, com pratos e panelas a soarem, enquanto em São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, a festa acontece nas ruas, de casa em casa. Comer uvas-passas à meia noite, sementes de romã e lentilha são também tradições comuns em nossos países, além das mesas mais do que fartas, fazendo-nos chegar ao novo ano com alguns quilinhos a mais.
A verdade é que, além das nossas crenças ou superstições e das palavras que repetimos como se fossem mantras, o novo só depende de nós, como nos diz o belo poema de Carlos Drummond de Andrade, "Receita de Ano Novo"1:
[...] Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
1 Carlos Drummond de Andrade, "Receita de Ano Novo" (disponível em Jornal de Poesia; acesso em 29 de dezembro de 2021).
Áudio disponível aqui:
[AUDIO: Edleise Mendes – Receitas de felicidade para o Ano Novo]
Crónica do programa Páginas de Português, em 2 de dezembro de 2022.