Quando pensamos numa língua muitas vezes a vemos da forma sisuda que na escola nos ensinaram a encará-la, com aquelas regras chatíssimas de gramática que parecem talhar um fato apertado que a sufoca. Afinal essas regras podem não ser tão antigas assim e dependem das brincadeiras que fazemos com a língua. E as influências que estão por trás de muitas modificações nem sempre são conhecidas de todos os utentes.
Vou exemplificar apenas com algumas palavras que a maior parte dos falantes do Português nem desconfiam nem nunca se perguntaram de onde vêm. Será que o pescador de fim de semana que na praia de Carcavelos, em Portugal, enfia uma minhoca no anzol para servir de isca, pensará que essa palavra minhoca afinal quer dizer cobra pequena e derivou do Kimbundu de Angola? Será que o brasileiro que xinga outro pensará que a acção que realiza se designa assim por causa da palavra kuxinga do mesmo kimbundu que quer dizer exactamente a mesma coisa?
Os estudiosos conhecem as centenas de palavras que do árabe derivaram para o português, as que vieram de línguas da Índia, de Moçambique ou dos dialectos do Brasil. Mas os utilizadores comuns da língua desconhecem que esses vocábulos, hoje reconhecidos como fazendo parte do Português, algum dia nele entraram porque havia pessoas que gostavam de brincar com palavras de outros idiomas que lhes pareciam mais adequados para exprimir qualquer coisa. Por exemplo, António de Oliveira Cadornega, autor do livro História Geral das Guerras Angolanas, de 1680, farta-se de pegar em palavras kimbundu ou kikongo e declina-as em português, introduzindo-as sem aspas nem itálico no discurso. Muitas dessas declinações não ficaram na língua que hoje usamos. Mas não teriam ficado se o livro dele fosse publicado no século XVII e não apenas neste? Diríamos talvez canzar e arimar em vez de saquear e cultivar, só para pegar em algumas palavras que ele muitas vezes utilizou.
Bendita língua que aceita brincadeiras!
Texto escrito especialmente para o Ciberdúvidas, na sequência dos contributos do do cabo-verdiano Germano Almeida, do guineense Carlos Lopes, do moçambicano Mia Couto e do português José Saramago.