Controvérsias // Linguagem inclusiva
Dobrar a língua
Sobre as saudações «Bom dia!», «Boa tarde!» ou «Boa noite!»... que não excluem ninguém

Confesso que em certas situações custa-me dobrar a língua. Como não alinho na bancada do «politicamente correto», não digo «Boa noite a todos e a todas». Pois não é verdade que saúdo quem está com os saborosos e bem portugueses «Bom dia!», «Boa tarde!» ou «Boa noite»?
O adagiário garante: «A língua não tem osso, mas quebra osso». Na verdade, ao contrário do que dizia no início, às vezes gosto de dobrar a língua. E até de desdobrá-la e ondulá-la com sensibilidade e respeito por ela, fazer os possíveis por não criar uma monotonia redundante e ensurdecedora. Afinal, é a língua (sem osso) que identifica o idioma para que tentemos comunicar como gosta.
Inferimos do ditado que há quem afie a língua e a dirija com ímpetos de malevolência. A língua afiada não dói, mas faz doer. Se ficar queimada, inverte-se o sentido da dor e dificilmente voltará a erguer-se. Estamos fartos de o saber e não é só da História o iluminar; tantos séculos de Literatura estão aí para nos lembrar o que a azáfama do dia a dia torna insensível.
Mas, atenção: «Antes escorregar do pé que da língua». Não é que a nossa civilização tenha aprendido muito. Na verdade, farta-se de escorregar do pé e muitas vezes até tiros lhe dá. Tiros, vejam lá! Podiam dá-los na língua, mas não; gostam de os dar no pé, vá-se lá saber porquê.
Que somos belicistas, há muito que o sabemos e não é de agora o desespero impotente perante guerras da família do arrasar. No entanto, as que não têm potências e a superpotência interessadas na refrega, não dispõem de voto mediático na matéria. Podia lembrar várias, mas não me dispenso de mencionar a luta pela autodeterminação do Saará Ocidental, aqui tão perto, contemporânea da de Timor, e que ainda espera o desenlace que os Timorenses acabaram por conseguir com sacrifícios que bem conheço.
Além de escorregarmos do pé, todos, vulgares cidadãos e até os eleitos em nosso (distantíssimo) nome, escorregamos da língua. Até os eleitos? Sobretudo e deixo implícito «todos e todas», pois não posso andar sempre com a língua a dobrar os sinos por causa do que o histórico machismo fez ao feminino.
Já agora, não esqueçamos que «quem mal fala, pior ouve» e «quem mal fala, sua língua suja». Há tempos e tempos e seus julgamentos: «Cuidado que a língua te não corte a cabeça». Também podia virar o aviso ao contrário; ou seja: «Cuidado que a cabeça não te corte a língua».
As ditaduras aplaudem as duas formas e aplicam-nas de variadas maneiras. Nunca esqueçamos o que nos fez aquela que atravessámos. Nas democracias representativas há modos mais sofisticados e, claro, muito menos violentos. Mas os exemplos explodem e implodem e cá vamos, «todos e todas», a escorregar pelas ladeiras da língua tornando banais as fanfarras do ódio e do populismo, sem tento no siso, no concreto da transparência e da integridade do bem comum.
Em conclusão, as saudações «Bom dia!», «Boa tarde!» ou «Boa noite!» não excluem ninguém. Se fosse o caso, então aprontaria um «Bom dia!» — menos para aquele senhor que está ali a ver se chove em Alguidares de Baixo e para aquela senhora que parece querer furar o teto com a peruca de uma girafa. Só assim conseguiria resolver a redundante redundância deste «a todos e a todas». E os públicos encontros bem precisados estão de não serem assim tão rotineiramente repetitivos, com as suas palavras de leva-as o vento das pré-campanhas eleitorais ensurdecedoras de todos os dias, palavras de guerras por dá-cá-aquela-palha, palavras de guerras de areia para os nossos olhos.
Cf. A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”?
Fonte
Texto da autoria de Manuel Costa Alves, transcrito, com a devida vénia, do semanário Reconquista, com a data 14 de dezembro de 2023.