DÚVIDAS

ARTIGOS

Ensino // José Saramago

Saramago no ensino do Português

A pedagogia dos livros do Nobel da Literatura

início da celebração do centenário do Nobel português da Literatura, que faria 99 anos no dia 16 de novembro de 2021, justifica um olhar sobre o estudo que se faz no ensino básico e secundário sobre a obra de José Saramago, no seu próprio país.

Sendo ele um autor que "assusta", muitas vezes, alunos e professores, confrontados pela complexidade das temáticas que desenvolve e pela linguagem singular que o caracteriza – nomeadamente na pontuação –, o  aproveitamento do enorme potencial que constitui o estudo dos seus textos passa, precisamente, pelo foco dessas maiores dificuldades e como fazer para ultrapassá-las em sala de aula.

Peguemos no exemplo da leitura feita por vários estudantes de escolas básicas de todo o país do conto  A maior flor do mundo, numa parceria entre a Fundação José Saramago, a Rede de Bibliotecas Escolares e o Plano Nacional de Leitura. O livro tem tudo o que é necessário para cativar os alunos do 1.º ciclo. Antes de mais, o título suscita a imaginação do aluno, e o professor deve aproveitar para fomentar essa curiosidade, indagando sobre o assunto, criando expectativas que eles procurarão confirmar ao longo da leitura.

Depois, deve ser feita uma leitura em voz alta, expressiva, onde o sentido do texto seja trazido à tona e os alunos possam confirmar as hipóteses iniciais. Acresce, ainda, que o livrinho  é riquíssimo em termos de cidadania, permitindo aliar a língua portuguesa à importância da preservação ambiental e do planeta, suscetível de conduzir a um debate sobre a importância de se cuidar da natureza.

Envolver os alunos com a obra é fundamental para se gostar de ler. Por isso, no final, os alunos poderão fazer um desenho sobre o conto. Uma vez que se trata de crianças, é importante que concretizem as ideias sobre o texto, criando ligação com ele. Numa espécie de celebração, podem trocar os desenhos entre si, numa espécie de “amigo oculto”, desencadeando a descoberta e o fascínio pela história narrada de Saramago.

Sabe-se que a literatura tem de ser motivada e pressupõe criar boas recordações para que os alunos voltem sempre a ela. Por isso, a literatura tem de ser cultivada desde tenra idade e Saramago oferece-nos livros para todas as idades.

Relativamente ao 3.º ciclo, o Conto da Ilha Desconhecida, escrito numa linguagem aparentemente simples, possibilita a exploração da metáfora, um conceito fundamental a nível literário. Como os alunos têm dificuldade em compreendê-lo, importa estabelecer uma ligação entre o texto e a vida real. Vejamos: o livro relata a história de um homem que pede um barco ao rei para buscar uma ilha desconhecida. Assim, há que lhes perguntar, por exemplo, o que poderia significar essa ilha e o que o homem poderia desejar, na verdade, encontrar. De seguida, relacionar essa busca com a vida deles: o que buscam? O que pretendem atingir? Para onde caminham? Que objetivos pretendem atingir?

Saramago nasceu há 99 anos, mas continua a ser extremamente atual!  As questões que colocou fazem agora, mais do que nunca, todo o sentido.

Já no 12.º ano, os alunos estudam o Memorial do Convento, obra que ultrapassa a classificação de romance histórico por não se tratar de uma mera reconstituição de um acontecimento histórico, a construção do convento de Mafra, mas, antes, um testemunho intemporal e universal do sofrimento de um povo sujeito à tirania de um rei: D. João V.

Apesar da dificuldade inicial, ao confrontarem-se com a rutura das regras da pontuação, com introdução do discurso direto sem utilizar os sinais gráficos, com o uso subversivo da maiúscula no interior da frase ou ainda com a mistura de discursos (direto, indireto, indireto livre e monólogo interior), os alunos acabam por aderir e compreender a ironia, a sátira e a linguagem depreciativa e humorística que denuncia as injustiças sociais, a omnipotência dos poderosos e a exploração do povo, que coloca em evidência as miseráveis condições de trabalho dos operários do convento de Mafra.

Assim, se o professor souber sensibilizar os alunos para a intencionalidade da obra, criando empatia face aos mais desfavorecidos, cujo esforço é elogiado e enaltecido na obra, se o professor conseguir fazer sobressair a crítica à sociedade portuguesa da primeira metade do século XVIII, os alunos serão capazes de ler, de ler efetivamente. Passa pelo professor ajudar a compreender, sentindo a literatura como um alicerce que os levará a crescer enquanto pessoas, em todas as suas dimensões e vertentes.

Depois disso, poder-se-lhes-á pedir que leiam Levantado do Chão. Estes alunos, os que cresceram por dentro, já com mais “bagagem” de leitura, talvez sejam capazes de descobrir as brincadeiras da linguagem e ganhar traquejo para compreender parágrafos que duram páginas sem seguir regras sintáticas ou pontuações que marcam a fala das personagens, misturando discursos direto e indireto, com traços de oralidade, com mistura de vozes, onde se imerge inconscientemente nos sentimentos alheios, que permitem ser «pessoas com gente dentro».

Ler Saramago é ter a capacidade de compreender com clareza a realidade em que vivemos. Ensiná-lo a ler é ser responsável pelos cidadãos que darão futuro ao mundo. 

Cf. Saramago nas salas de aula do Ensino Básico + Obras de José Saramago podem ser utilizadas no ensino fundamental e médio.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa