«[...] [O] fato é que uma língua é um conjunto de hábitos arraigados. No caso do vocabulário e da gramática, trata-se de hábitos mentais, mas em relação à fonética esses hábitos são essencialmente articulatórios, portanto dependentes de uma habilidade motora. Ora, é mais fácil treinar neurônios do que músculos, o que explica por que é mais fácil aprender novas palavras ou construções do que novas maneiras de posicionar ao mesmo tempo a língua, os lábios e os dentes.»
Você já deve ter notado que o aspecto mais difícil de aprender numa língua estrangeira é também o mais perceptível de todos: a sua pronúncia. Um estrangeiro que viva há muitos anos no Brasil pode falar português fluentemente, exibir uma correção gramatical de dar inveja aos brasileiros mais cultos e, mesmo assim, conservar, ainda que levemente, uma pronúncia que denuncia sua origem: é o famoso sotaque.
Mas por que é tão difícil perder o acento nativo quando se fala outro idioma? Por que é mais fácil dominar o léxico e a gramática de uma língua do que sua fonética?
Segundo as teorias científicas mais recentes, a aptidão para a linguagem é inata. A criança nasce com seu repertório linguístico “zerado” em termos de vocabulário, sintaxe e pronúncia, mas traz do berço módulos cerebrais que lhe permitem preencher esses vazios. Portanto, todos nós temos uma “língua do pensamento” que já vem pré-instalada “de fábrica”, como o sistema operacional dos computadores. Depois, com o aprendizado, vamos instalando outros softwares e gravando novos arquivos na mente.
Com a pronúncia não é diferente. Graças aos chamados neurônios-espelho, a criança é capaz de imitar com progressiva precisão os sons vocais emitidos pelos adultos à sua volta. Isso significa que ela sabe em que posição e lugar deve manter a língua para realizar um determinado som apenas observando os adultos, sem que ninguém precise lhe explicar – nem seria possível, obviamente. Além disso, a criança que aprende a falar é capaz de reconhecer e distinguir nuances mínimas dos sons, a ponto de perceber quais variações são funcionais para a distinção do significado e quais não. Ou seja, crianças em fase pré-linguística são foneticistas natas.
O problema é que, depois que aprendemos nossa primeira língua, as oposições funcionais entre os sons ficam cristalizadas em nossa mente, talvez até para evitar que as confundamos ao falar, mas isso com frequência nos causa embaraço quando temos de aprender novas oposições, o que ocorre quando estamos adquirindo um novo idioma. Por isso, tendemos a substituir, consciente ou inconscientemente, um som estranho por outro mais familiar, isto é, um som estrangeiro por um nativo. Isso é ainda mais frequente quando estão em jogo duas línguas próximas, como o português e o espanhol.
Antes de tudo, quando aprendemos nossa primeira língua, ou língua materna, estamos ao mesmo tempo aprendendo a nos relacionar com o mundo. Nossa língua é nossa realidade, é por meio dela que pensamos e conhecemos a vida ao nosso redor. Já, quando aprendemos uma segunda língua, em geral o fazemos por razões culturais ou profissionais. Mesmo que disso dependa nossa sobrevivência num país estrangeiro, somos capazes de viver e pensar ainda que não dominemos completamente esse novo instrumento de comunicação.
É por isso que crianças que aprendem dois idiomas simultaneamente na mais tenra infância tornam-se perfeitamente bilíngues, sendo capazes de falar fluentemente, sem sotaques ou interferências de qualquer tipo, ambas as línguas e, mais ainda, capazes de pensar em qualquer uma delas.
Mas o fato é que uma língua é um conjunto de hábitos arraigados. No caso do vocabulário e da gramática, trata-se de hábitos mentais, mas em relação à fonética esses hábitos são essencialmente articulatórios, portanto dependentes de uma habilidade motora. Ora, é mais fácil treinar neurônios do que músculos, o que explica por que é mais fácil aprender novas palavras ou construções do que novas maneiras de posicionar ao mesmo tempo a língua, os lábios e os dentes.
Some-se a isso o fato de que uma nova palavra é uma unidade de sentido, mas, ao mesmo tempo, uma pluralidade de sons. Se tenho de pronunciar rapidamente uma ou mais palavras estrangeiras, como numa frase, tenho de pensar na posição dos meus órgãos fonadores para cada um dos fonemas que se sucedem. E tenho de fazer isso a uma grande velocidade. O processamento simultâneo de todas essas informações requer uma coordenação motora extrema. É como aprender a tocar violão: levamos um tempo enorme para conseguir posicionar todos os dedos nas cordas certas e assim fazer um acorde; no entanto, mal conseguimos isso, já temos de passar para o acorde seguinte no ritmo da música. Esse processo só se torna eficiente com o treino e a automatização dos movimentos, até o ponto de fazermos isso mecanicamente, sem pensar.
Por sinal, a fonética é a parte mais mecânica e menos criativa da língua, a que exige menos esforço mental. Enquanto as regras sintáticas se contam às centenas, e as palavras, aos milhares, os sons fonéticos raramente passam de 40. Por ser mecânica e pouco criativa, a fonética sempre fica em segundo plano quando se trata de falar uma língua estrangeira. Estamos mais preocupados em nos fazer entender do que em pronunciar os sons estrangeiros com perfeição, o que parece ter importância mais estética do que funcional.
Essa dificuldade de incorporar hábitos articulatórios estranhos aos nossos não afeta apenas a capacidade de falar línguas estrangeiras, mas até os acentos regionais de uma mesma língua são difíceis de imitar. É por isso que os atores de televisão geralmente produzem um sotaque caipira ou nordestino caricato e pouco convincente nas novelas.
Além disso, a habilidade de reproduzir sons estrangeiros varia de pessoa a pessoa conforme certas aptidões inatas. Por isso se diz que determinado indivíduo tem melhor ou pior “ouvido” para línguas. Assim como há um “ouvido” musical (na verdade, a chamada inteligência musical de que fala Howard Gardner), que faz algumas pessoas serem mais afinadas do que outras, há uma espécie de inteligência fonética, parte da mais geral inteligência linguística. Por essa razão, embora qualquer um seja capaz de aprender novos idiomas, uns aprendem com mais facilidade do que outros, e alguns são capazes de passar a vida inteira num país estrangeiro e, ainda assim, conservar seu sotaque nativo.
Chega a ser hilário – embora aconteça com frequência – o fato de algumas pessoas nunca conseguirem pronunciar perfeitamente a língua de adoção e ainda acabarem falando com sotaque a própria língua nativa, numa espécie de meio-termo entre as duas, o que lembra aquela anedota em que o cidadão foi morar fora, não só não aprendeu a nova língua como ainda esqueceu a antiga. Conclusão: voltou para casa mudo.
In Diário de um Linguista, 7/07/2018.