« (...) Precisamos de produzir dicionários, livros didácticos e científicos. Precisamos de anotar os demais falares do português, de os descrever e registar. Não basta dizer que existe o português de Angola, senão se pensar em registos sofisticados. (...)»
A língua portuguesa, desde que atingiu as terras africanas, começou a viver um processo de familiarização com as línguas desse território, um processo contínuo que, em muitos aspectos, contribuiu (e continua a contribuir) para o enriquecimento lexical dessas línguas e estas sobre o português. Ora, como as línguas vivem de contactos, o português em Angola ganhou especificidades que o tornaram diferente das duas variedades nacionais (português europeu e português do Brasil) e das demais em ascensão em África. Como é óbvio, apesar destas características individuais, a língua portuguesa continua a ser um património comum (conceito de unidade na diversidade).
Estas diferenças são notáveis em todos os campos da língua, embora com maior destaque para a fonética e o léxico, campos linguísticos mais abertos e livres, fáceis de aceitar influências.
Entretanto, os outros domínios linguísticos, como a pragmática, morfossintaxe e a semântica, também deixaram marcas indeléveis no modo de se falar o português no espaço angolano e que, muitas vezes, afectam a escrita dessa língua em contexto formal. Este reconhecimento obriga a pensarmos numa língua portuguesa angolana, que nos identifica a todos e nos torna diferentes de um português ou de um cabo-verdiano. O caminho é longo e o desafio é enorme. Pouco ainda se fez para o conhecimento desta variedade do português que, muitas vezes, é confundida com o incorrecto, com aquilo que é contrariado pela norma do português europeu (PE). É, pois, por isso que muitos estudos sobre o português de Angola (PA) são baseados num corpus fechado, mormente extraído de textos literários.
Precisamos de produzir dicionários, livros didácticos e científicos. Precisamos de anotar os demais falares do português, de os descrever e registar. Não basta dizer que existe o português de Angola, se não se pensar em registos sofisticados. Precisamos de produções que demonstrem os demais falares que constituem a(s) variedade(s) do nosso português.
Apesar de se reconhecer, a nível linguístico, a existência do português angolano, é preciso que se produzam leis que fundamentem a sua existência e a sua aplicação. Não basta dizer que existe o português de Angola; é preciso ser legislado. Isso chama-se política linguística, quase inexistente em Angola. Não basta falar que «o português é a língua oficial em Angola» (art.º 19 da Constituição da República de Angola), já que este português não é o praticado pela população.
É preciso percorrer por Angola adentro, conhecer os falantes, o modo como estes articulam o português, desde os aspectos mais simples aos mais complexos. Saber se o ritondense articula a vibrante r tal igual ao lobitanga ou se divergem.
É preciso promover estudos que permitam entrar em contacto com os falares locais, comparar o português de cada uma das 18 províncias e de cada um dos seus municípios, identificar fronteiras linguísticas, pontos de divergências e convergências, recolher in loco e registar os dados!
É aqui que devemos seguir as contribuições de José Leite de Vasconcelos, que recolheu os falares de Norte a Sul de Portugal, estudou a língua mirandesa, sob título Dialecto Mirandez (1882) e publicou a carta Dialectologia de Portugal Continental. Lembre-se, também, do esforço de Manuel de Paiva Boléo, que desenvolveu um estudo, inicialmente por inquérito, denominado «Inquérito de Paiva Boléo», e que, mais tarde, viria a ser acrescentado com entrevista e recolhas de dados in loco.
São trabalhos como estes que devemos realizar, para deixarmos de confundir o português angolano com a não realização da concordância do sintagma nominal ou da má colocação do pronome átono em relação ao hospedeiro (verbo).
Cf. O ensino da oralidade não é apenas para alunos que não "sabem" falar português
Artigo publicado originalmente no semanário angolano O Pais, do dia 6 de fevereiro de 2021. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945, em vigor em Angola.