DÚVIDAS

ARTIGOS

O nosso idioma // A arte do uso da linguagem

Sermão do bom ladrão

«[…]

Encomendou E-Rei D. João o terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia por via de seu companheiro, que era mestre do príncipe; e o que o Santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os modos. A frase pareceu jocosa em negócio tão sério; mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra diz tudo.

Nicolau de Lira, sobre aquelas palavras de Daniel: Nabuchodinosor rex misit ad congegandos sátrapas, magistartus et judices, declarando a etimologia de sátrapas, que eram os governadores das províncias, diz que este nome foi composto de sat e de rapio. Dicuntur satrape qusi satis rapientes; quia solent Bona inferiorum rapere: "Chamam sátrapas, porque costumam roubar assaz". E este assaz é o que especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos os modos. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não só do cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes aquém se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio; porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que não conheceu Donato nem Despautério. Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções na rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quando lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as cousas desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimónia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras, quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triénio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos que lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz activa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam roubadas e consumidas.

É certo que os reis não querem isto, antes mandam em seus regimentos tudo o contrário; mas como as patentes se dão aos gramáticos destas conjugações tão peritos ou tão cadimos nelas; que outros efeitos se podem esperar dos seus governos? Cada patente destas em própria significação vem a ser uma licença geral in scriptis ou um passaporte para furtar.

[…]»

Sermão do Bom Ladrão VIII, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, no ano de 1655.



Cf.  10 das melhores frases do Padre António Vieira

Fonte

«Sermão do Bom Ladrão», in Sermão de Santo António e outros textos, Lisboa, Oficina do Livro, 2008, pp. 144-146 ,

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