Paulo J. S. Barata comenta o uso que se faz em Portugal das expressões taxa moderadora e Scut.
A linguagem mantém quase sempre resquícios do seu valor denotativo, mesmo quando este é sobrepujado pelo valor conotativo, adquirindo outros sentidos e cambiantes. É, pois, quase sempre possível reconhecer, através da análise contextual, por muito mascarado que esteja pelas conotações que entretanto adquiriu, o valor denotativo da linguagem.
Na linguagem normativa impera obviamente o valor denotativo. Procura-se que as palavras valham estritamente pelo seu valor facial, que sejam precisas e unívocas, a fim de evitar a dúvida e a contestação. Procura-se a máxima objetividade que a linguagem permita.
É por esta razão que pasmo quando ninguém promove a mudança, ou ao menos se interroga, quando em situações normativas a linguagem perde o seu valor referencial e se geram contradições absolutas, verdadeiros absurdos, aleijões ilógicos.
O direito à proteção da saúde encontra-se consagrado constitucionalmente no artigo 64.º da Constituição da República, sendo garantido através de um Serviço Nacional da Saúde (SNS) universal e geral, «tendencialmente gratuito». Só que o SNS tem custos cada vez maiores. Segundo o contador da Pordata — Base de Dados de Portugal Contemporâneo —, ascendem a cerca de 30 milhões de euros por dia! As chamadas taxas moderadoras surgiram, assim, em 2003, de forma natural, para ressarcir, ainda que muito parcialmente, os custos do SNS, embora tal tenha sido justificado como servindo para moderar o acesso irrestrito sobretudo às urgências hospitalares, quando afinal se podia ir a uma consulta de linha nos centros de saúde. Daí a designação de moderadora. A própria lei, porém, se encarrega de a contraditar, pois as taxas moderadoras foram introduzidas não só nos serviços de urgência hospitalares e centros de saúde, mas também nas consultas nos hospitais, centros de saúde, etc., bem como nos exames complementares de diagnóstico e terapêuticas, à exceção dos realizados em internamento. Não é crível que um doente possa moderar o acesso a exames complementares de diagnóstico, desde logo porque é da responsabilidade do médico a sua prescrição. Em 2007, chegou-se mesmo a alargar — ainda que tal tenha sido revogado em 2009 — o âmbito destas taxas moderadoras aos internamentos e actos cirúrgicos. Como se fosse possível, ou ao menos lógico, que os doentes pudessem moderar o acesso a internamentos e intervenções cirúrgicas! A introduzirem-se taxas, que creio, aliás, inevitáveis, chamássemos-lhes outra coisa qualquer: «Taxa de Serviço», «Taxa Mínima de Serviço», o que fosse! De modo a assegurar a mínima verosimilhança e o valor referencial da linguagem.
Igual situação surge agora com a introdução de portagens nas chamadas autoestradas Scut. As Scut são autoestradas com portagens virtuais, cujos custos são suportados pelo Estado, através do pagamento às empresas concessionárias. O acrónimo Scut é claro e significa Sem custos para o utilizador. E em si mesmo já não é feliz, uma vez que ao menos indiretamente essa estrada tem custos para os utilizadores, visto ser paga pelo Estado com o dinheiro arrecadado em impostos e taxas pagos também por esses utilizadores. Mas não vamos sequer por aí! Dê-se por bom o acrónimo Scut para identificar as autoestradas sem custos diretos para os utilizadores, ou seja, em que estes não pagam portagens, por oposição às autoestradas em que os utilizadores pagam portagens.
Desde 2004, as Scut têm vindo a crescer em número. São hoje 7 e já totalizam cerca de 1000 km. As faturas cresceram proporcionalmente e representam hoje cerca de 700 milhões de euros por ano, a pesar num cenário de défice excessivo e de necessidade imperiosa de baixar a despesa e/ou de arrecadar mais receitas. O Governo decidiu-se, assim, pela criação de portagens nas Scut e legislou nesse sentido, através do Decreto-Lei n.º 67-A/2010, de 14 de junho*.
Como as autoestradas já estavam batizadas de Scut, assim se mantiveram. É certo que as siglas e os acrónimos muitas vezes se impõem e ganham tal notoriedade, que vivem por si e quase perdemos o sentido do seu desdobramento. Eppur si muove: ele está lá com todo o seu valor denotativo. Apesar do cuidado posto na redação do diploma, em que apenas no preâmbulo se utiliza, embora por três vezes, o acrónimo Scut, é, mesmo assim, possível ler-se que este: «[…] fixa, ainda, a data a partir da qual se inicia a cobrança das referidas taxas, no âmbito das concessões SCUT [Sem Custos para o Utilizador] Costa de Prata, Grande Porto e Norte Litoral». Portanto, fixa a data a partir da qual se inicia a cobrança de taxas aos utilizadores em estradas sem custos para os utilizadores?!
Não domino a técnica legislativa, mas ter-se-ia — dever-se-ia — encontrar modo de sanar este contra-senso. A querer-se manter a distinção entre autoestradas com portagens tradicionais, físicas, pagas no momento, em dinheiro ou através de cartão de débito ou crédito, e autoestradas com portagens eletrónicas, pagas num momento posterior, rebaptizar-se-iam as segundas chamando-lhes, por exemplo: «Autoestradas com Portagens Eletrónicas» ou «Autoestradas com pagamento diferido», referindo-se em artigo do diploma: «Todas as Scut, designadas autoestradas sem custos para os utilizadores, passarão doravante a ser designadas por […]» ou «Todas as autoestradas em regime Scut passarão doravante a estar em regime de […]».
Avizinhando-se mais legislação sobre a matéria, fica a sugestão, a fim de manter a verosimilhança do que se diz e não se perder o valor referencial da linguagem, ao menos nas leis e normas que nos regem…
* Ainda a propósito do supracitado Decreto-Lei n.º 67-A/2010, de 14 de junho, sublinhe-se o modo como é designada a empresa que irá assegurar a gestão do sistema de cobranças de taxas nestas auto-estradas: a EP – Estradas de Portugal, S. A. (EP, S. A.), apenas para registar a flutuação de usos, numa mesma designação, na utilização das abreviaturas, com e sem ponto, indicando a supressão.