O editor espanhol Mario Muchnik costuma dizer que o caminho dos campos de concentração começa por um erro ortográfico. Trata-se é claro de uma "boutade", género em que o personagem em causa é versado e pródigo, mas há nela algo de profundamente certeiro. Não porque o respeito da ortografia seja um sinal de veneração pela regra e porque isso seja bom, mas porque a ortografia é, pelo contrário, o respeito da história, da nossa cultura, dos relatos, da memória e dos sonhos. Mais do que algo que se pretenda impor-nos, a ortografia é o que somos. Cada palavra é um fóssil profundamente humano e um desafio à curiosidade e à criação, um laço entre o passado e o futuro. A ortografia é ela própria uma narrativa, contém uma história, diz-nos quem são as palavras, de onde vêm e por vezes até para onde vão – que é mais do que alguma vez saberemos de nós próprios. A grafia evolui, como tudo, em contínuo ou aos saltos, às vezes com golpes de Estado (como os acordos ortográficos), outras com revoluções populares que transformam sanduíches em sandes, é enriquecida por corrupções às vezes com sentido, ricas e imaginativas, que conquistam os seus espaços, definindo novas ortodoxias simultaneamente democráticas e meritocráticas, onde o uso manda e os peritos arbitram.
Mas se a ortografia vive uma perpétua mutação, é evidente que nem todas as cambiantes são aceitáveis, imaginativas e justificáveis. E muitas surgem por pura ignorância e pertencem ao domínio da calinada arrogante que não sabe, não quer saber e tem raiva a quem sabe – como Goering quando ouvia falar de cultura.
Nos últimos anos, com a expansão do acesso aos meios de comunicação (do lado dos produtores e dos consumidores) e a explosão de mensagens, o panorama mediático poluiu-se com tais atropelos à ortografia (falo apenas no sentido estrito da correcta escrita das palavras) que se tornou capaz de injectar a dúvida nos mais letrados.
Mesmo "slogans" de empresas que se imagina deverem passar pelo mais exigente crivo de competências deixam passar estas pequenas infâmias (o "Sempre ao seu dispôr" [sic], que o Modelo-Continente usou durante anos), assim como títulos de filmes ("Exterminador Implacável 3 – A Ascenção [sic] das Máquinas") e a publicidade às empresas mais reputadas ("Diriga-se [sic] já a um balcão Totta", publicidade num "outdoor"). Os exemplos podem multiplicar-se: uma empresa de recolha de entulhos tem contentores em Lisboa onde se vê escrito "Os golutões [sic] do entulho", o "Jornal de Negócios" faz uma campanha onde diz "Não substime [sic] a importância de uma boa parceria"; outra empresa envia comunicados assinados pela "Acessoria [sic] de Imprensa". Uma cadeia de restaurantes de comida a peso chama-se "À grama" como se quisesse incentivar-nos a lançar-nos sobre a relva em vez de se preparar para nos vender comida ao quilo e ao grama. Um grande empreendimento imobiliário escolhe para designação "Quinta do Perú [sic]". Claro que um simples dicionário podia ajudar estas pessoas, mas para quê consultar dicionários quando elas já sabem como é que as coisas se escrevem?
A ortografia é importante porque encerra uma parte da história das palavras e da relação entre elas. A grafia das palavras contém uma biblioteca de relações, um jogo de reflexos, um rasto pleno de significados, um mundo hipertextual cheio de "links", que permitem saltar de significado para significado num jogo sem fim. E a verdade é que "ascenção" já deixou de ter alguma coisa a ver com o ascensor - ainda que a corruptela "acessoria [sic]" seja plena de novos significados talvez mais de acordo com o que se espera dela.
Enquanto noutros países as classes dominantes fazem gala da sua competência e apostam numa preparação de escol, em Portugal as nossas pindéricas elites políticas ou empresariais apostam na displicência, na descontracção, dizem "pugama" e "pecebe", não estudam muito e apesar disso até chegam ao Governo, desde que tenham os pais certos e escolhido bem os amigos. O amor das palavras está bem longe disso. A ortografia vai tornar-se certamente cada vez mais criativa.
Artigo inserto no jornal "Público", de 27 de Julho de 2004