O (...) leitor Segismundo de Bragança traz-nos duas dúvidas que ilustram algo que é relativamente comum: as pessoas que se interessam por questões de língua começam a dar conta de que há formas e construções (conjugações, concordâncias, formações de palavras, etc., etc.) que, pela lógica, não deviam ser como são.
A ideia feita de que a língua é um instrumento de comunicação talvez tenha levado a pensar que a língua foi primeiramente construída e só depois posta na boca dos falantes. Mas a língua — qualquer língua — não foi criada antes do Homem. Foi criada com o Homem. O Homem é por definição um ser falante. Não podemos pensar que a língua é obra de um engenheiro linguístico — que aí tenha empenhado toda a racionalidade e esforço em cálculos matemáticos. A língua é de quem a fala — milhões de falantes de uma comunidade. É uso, prática, cultura, história, variação.
O que aconteceu foi que a linguística conseguiu apurar regularidades, relações sistemáticas de oposição e semelhança, a partir da observação das trocas verbais reais. O que encontramos hoje nos prontuários e nas gramáticas é o resumo dessas regularidades consagradas em convenções.
Portanto, se dizemos que se convencionou formar o grau de comparativo de «pequeno» em «mais pequeno do que», e o grau comparativo de «grande» em «maior do que», é porque não há nenhuma explicação lógica para tal. E a prova de que se trata de uma convenção é que a norma do português do Brasil postula «menor» em vez de «mais pequeno». O mesmo podemos dizer sobre o uso do plural em «zero bolas», assim como em «zero unidades», «zero horas», «zero gramas» — e, mais uma vez, temos a variação nacional: os brasileiros dizem «zero hora».
Isto não quer dizer que cada falante, na sua individualidade, possa falar como lhe apetece. Ele tem de respeitar as práticas consagradas. E se quiser estudar os esquemas e as estruturas que existem por detrás dessas práticas, encontrará fenómenos bem interessantes, ainda que sem uma lógica predeterminada.
*Artigo publicado no semanário Sol de 21 de Julho de 2007, na coluna Ver como Se Diz