Seis cartas em tupi antigo escritas por indígenas durante o período colonial brasileiro foram finalmente transcritas e traduzidas para o português pelo filólogo e lexicógrafo Eduardo Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). A correspondência é a única do tipo que se conhece até o momento e foi redigida depois da invasão de Pernambuco por holandeses financiados pela Companhia das Índias Ocidentais, em 1630.
Por 24 anos, os holandeses dominaram boa parte da costa oriental do Nordeste brasileiro, com exceção da Bahia. Em 1645, os luso-brasileiros se insurgiram e originaram o conflito que ficou conhecido como Insurreição Pernambucana e durou até 1654. Indígenas potiguaras também participaram das batalhas. «Parentes uns dos outros, eles eram conhecidos como Camarões e se dividiram durante a guerra. Alguns permaneceram com os luso-brasileiros, enquanto outros se alinharam aos holandeses. Em 1645, eles trocaram essas cartas», relata o pesquisador.
Preservados há quase 400 anos na Real Biblioteca de Haia, nos Países Baixos, os manuscritos eram conhecidos desde 1885. No entanto, ainda não tinham sido transcritos e traduzidos completamente, apesar de tentativas precedentes, como a realizada pelo engenheiro Teodoro Sampaio (1855-1937), que soube de sua existência por meio do historiador José Hygino Duarte Pereira (1847-1901), que as descobriu. Na década de 1990, o linguista Aryon Rodrigues (1925-2014), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esteve na Real Biblioteca de Haia e obteve cópias das referidas cartas, às quais Navarro teve acesso. «Percebi que ninguém conseguia traduzir as cartas porque não havia dicionário em tupi antigo. Então, elaborei o Dicionário de tupi antigo: A língua indígena clássica do Brasil [Global Editora, 2013], para depois fazer a tradução dos documentos», explica o filólogo.
Foram vários os desafios. Um deles é que os potiguaras haviam sido alfabetizados em português e utilizavam o alfabeto latino para escrever em sua própria língua, o que trouxe dificuldades para a interpretação da escrita. «Por exemplo, eles não usavam regras ortográficas claras e escreviam muitas palavras juntas», comenta Navarro.
A tradução dos documentos traz contribuições tanto para o campo da história quanto para o da linguística. Para a história, por dar informações sobre a Insurreição Pernambucana até então desconhecidas, como, por exemplo, os nomes de chefes potiguaras mortos e de locais de conflito. Para a linguística, por mostrar o estágio de desenvolvimento do tupi no século XVII.
Notícia transcrita, com a devida vénia, da publicação em linha de 28 de novembro de 2021 da revista Pesquisa FAPESP, editada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).