Ana Martins - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ana Martins
Ana Martins
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e licenciada em Línguas Modernas – Estudos Anglo-Americanos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestra e doutora em Linguística Portuguesa, desenvolveu projeto de pós-doutoramento em aquisição de L2 dedicado ao estudo de processos de retextualização para fins de produção de materiais de ensino em PL2 – tais como  A Textualização da Viagem: Relato vs. Enunciação, Uma Abordagem Enunciativa (2010), Gramática Aplicada - Língua Portuguesa – 3.º Ciclo do Ensino Básico (2011) e de versões adaptadas de clássicos da literatura portuguesa para aprendentes de Português-Língua Estrangeira.Também é autora de adaptações de obras literárias portuguesas para estrangeiros: Amor de Perdição, PeregrinaçãoA Cidade e as Serras. É ainda autora da coleção Contos com Nível, um conjunto de volumes de contos originais, cada um destinado a um nível de proficiência. Consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e responsável da Ciberescola da Língua Portuguesa

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Meu professor ensinou [...] que o correto seria «Os olhos dela são azul». Justificou informando que a expressão «da cor» estaria subentendida. Por exemplo:

«Os olhos dela são azul.»

«Os olhos dela são da cor azul.»

«Camisas verde.»

«Camisas da cor verde.»

«Calças preta.»

«Calças da cor preta.»

Enfim, faz sentido a explicação dada por ele? Eu acho controversa a questão, as duas formas são corretas, tanto por concordância, «são azuis», como pela locução subentendida «da cor», camisas «da cor» verde. Com essas ponderações, busco informações abalizadas dadas por vocês, especialistas no assunto.

Resposta:

Os nomes de cor são usados como adjetivos e, portanto, concordam em género e número com o substantivo qualificado por eles.

Essas palavras são usadas como substantivos apenas para designar a entidade do mundo real que representam: «o verde não lhe fica bem»; «usar verde da paz».

Há casos em que usamos substantivos para atribuir a um outro substantivo a característica da cor, nesses casos, usa-se a expressão «da cor (de)» antes do termo substantivo escolhido como qualificador: «blusas da cor creme», «blusas cor de creme» ou «blusas creme»; «sapatos‎ cor de ouro velho» ou «sapatos ouro velho»; «vestidos rosa» ou «vestidos cor de rosa»; «olhos cor de esmeralda» ou «olhos esmeralda». Nos casos mencionados e em outros com as mesmas características, podemos omitir a expressão «da cor de» e não flexionar o nome, pois a expressão «da cor de» está implícita.

Voltando aos nomes de cor – azul, amarelo, branco, etc. –, não encontro outro uso/significado para os mesmos que não seja o de atribuir a qualidade de uma cor ao substantivo que acompanham e, como tal, devem concordar em género e número com o substantivo que determinam. Exceto nos casos dos adjetivos compostos que já se encontram descritos em qualquer gramática.

Creio, portanto, que o professor em questão se equivoca ao generalizar uma regra que se aplica exclusivamente aos casos em que a qualidade da cor provém de um substantivo concreto.

Termos náuticos e quinta-essência da língua

A propósito das referências ao mar no léxico português, Ana Sousa Martins dá exemplos, mas adverte que o discurso sobre a riqueza expressiva da língua portuguesa pode ser ingénuo e contraproducente. Crónica transmitida na rubrica "Palavrar" dos programas Língua de Todos (RDP África) e Páginas de Português (Antena 2).

 

Pergunta:

Sempre surgem críticas referentes ao modo nordestino de pronunciar as vogais e e o de sílabas átonas. O famoso gramático Napoleão Mendes chegou a dizer que tais vogais em sílabas átonas devem ser proferidas de maneira fechada, como de fato é a pronúncia dos moradores do Sudeste e do Sul do Brasil. Algumas pessoas chegam ao ponto de asseverar que a pronúncia nordestina, além de ser feia, é também errada. A questão é tão séria, que alguns nordestinos, quando vão a São Paulo ou a outros lugares daquelas regiões supramencionadas, ficam receosos de abrir a boca para que não passem por constrangimentos. Ora, de uma vez por todas, constitui erro pronunciar abertamente as vogais e e o quando fazem parte de sílabas átonas? Como exemplos, cito algumas palavras: PErnambuco, rEvElação, REcife, prOgrEssivo etc. Nesses exemplos, o E e O foram escritos com maiúscula para dizer que são prolatados de forma aberta.

Espero vossa abalizada opinião, que agradeço desde já

Resposta:

Infelizmente, «o famoso gramático Napoleão Mendes» deve ter saltado a leitura de um ainda mais famoso estudioso da língua, Antenor Nascentes, que já em 1958, quando iniciou a organização do primeiro mapa dialetológico brasileiro, apontava para duas grandes áreas dialetológicas no Brasil que se fazem representar pela execução dos fonemas /e/ e /o/ em posição pretônica. No Norte, essas vogais soam abertas, e no sul, fechadas. A título informativo, Castilho, 2010, clarifica o que se entende como Norte e Sul do Brasil em termos de fala e ratifica, cinco décadas depois, as afirmações de Nascentes sobre a pronúncia das vogais átonas pretônicas. «O falar do Norte compreende dois subfalares, o amazônico e o nordestino. O falar do Sul compreende quatro subfalares: o baiano, o mineiro, o fluminense e o sulista.»

Há, porém, uma observação que me parece necessária quando se trata de dialetologia, ou seja, do estudo das variedades geográficas de uma língua. Por um lado, a língua, como fato social, é passível de distinções conforme os grupos de falantes observados, por outro lado, por mais que cada grupo assevere que é o seu modo de falar o mais agradável ao ouvido, isso será sempre uma questão subjetiva e psicológica. As pessoas classificam de feio ou bonito segundo a sua própria miopia ou experiência. Em geral, quem tem menos experiência e visão mais limitada é quem é mais crítico com o outro, incapaz de medir a sua própria ignorância.

Haveria muitas questões a considerar se fôssemos comentar conceitos de erro, variantes fonológicas e variedades geográficas do português do Brasil. Para não alongar demasiado uma resposta que se quer breve e direta, recomendo ao consulente que siga usando os seus sonoros /e/ e /o/ pretônico que encantam a plateia e identificam tão bem os oriundos de uma região interessantíssima como...

Em Portugal, está-se nos antípodas, por exemplo, dos EUA ou do Reino Unido – onde qualquer pessoa tem consagrado o direito a aceder a informação clara e concisa, de interesse público. «É o terreno ideal para [qualquer] político (...) fazer florescer a sua inventividade linguística, que ora lhe serve para fazer um pouco de demagogia, ora para esconder estragos.» In jornal Público de 10 de novembro de 2012, que a seguir se transcreve na íntegra.

Pergunta:

Em «Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive», quero saber a função sintática do pronome relativo e a função sintática de «de bichos», de acordo com a norma brasileira.

Grato!

Resposta:

A função sintáctica do pronome relativo é a do elemento por ele substituído na oração, ou seja, sujeito, uma vez que o relativo substitui o sujeito do verbo ser em «nunca fui de bichos».

O constituinte «de bichos» faz parte da expressão cristalizada «ser de», significando «gostar de» ou «ter afinidade com». Trata-se de um fenómeno ainda em estudo tanto por brasileiros como portugueses. Faz parte das predicações com verbo-suporte, onde verbo e nome ou expressão nominal compõem um único significado. Como acredito que a consulta tem objectivos mais imediatos e menos investigativos, deixo de lado essas considerações e sugiro que classifique a referida expressão como predicativo do sujeito, pois a expressão atribui uma característica ao sujeito do verbo. Poder-se-ia desdobrar a frase em: «Eu não sou uma pessoa que goste de bichos», onde a parte em itálico tem, igualmente, função de predicativo do sujeito.

Para maiores esclarecimentos, sugiro a consulta de:

2000, Baptista, Jorge. Sintaxe dos nomes predicativos construídos com o verbo-suporte SER DE. (Tese de Doutoramento/PhD Thesis). Faro: Universidade do Algarve (publicada conjuntamente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e pela Fundação Calouste Gulbenkian, 2005).