Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Com que, então, o maroto do tio Jonas enviava aquele montão de inutilidades sem ao menos apreciá-las completamente!?»

Gostaria de saber se está correta a frase acima, em especial quanto à pontuação e à expressão «com que então».

Obrigado.

Resposta:

 A pontuação não está totalmente correta, porque a locução «com que então» não deve apresentar vírgula a separar «com que» de «então».

«Com que então» constitui um marcador discursivo, que se escreve «com que então», sem vírgula interna mas com outra a delimitá-la do resto da frase:

«com que então (pop.): expressão que traduz uma suposição, dúvida, hipótese, e que significa: ao que parece, segundo consta.» (António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, Edições João Sá da Costa, 2006)

«com que então: c[om] que então, vais fazer uma viagem ao Brasil!... Quem me dera também poder ir (exprime surpresa ou admiração); c[om] que então, andas por aí a dizer coisas a meu respeito? Ora vamos pôr isso tudo em pratos limpos (exprime censura, atitude condenatória).» Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, Livraria Chardron de Lello e Irmãos Editores, 1985)

 

N. E. (21/02/2019) – Assinale-se que a locução «com que então» também ocorre sem vírgulas a destacá-la do contexto frásico, sem que este uso constitua um erro: «Com que então a tua mãe continuou...

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da palavra Pícua. Moro na «casa da Pícua», existe perto do Porto uma Quinta da Pícua, que pertenceu à mesma família.

Recordo-me de ver, num dicionário muito antigo, que "pícua" tinha dois significados, «besta (arma)» e «sorvedouro de dinheiro (algo onde se gasta dinheiro continuamente , sem fim)».

Se possível, gostaria de saber qual o dicionário onde consta "pícua" e se existem outros significados para esta palavra.

Muito obrigado.

Resposta:

Não conseguimos identificar o dicionário a que se refere o consulente, nem desvendar a origem e a etimologia do topónimo em questão.

Noutros dicionários, não se atesta o registo de "pícua". No entanto, encontra-se a forma picuá, palavra de origem tupi (grupo linguístico ameríndio, que se encontra no Brasil), com o significado de «cesto, saco». Será "pícua" uma variante de picuá, ou trata-se do caso contrário? Ou terá Pícua que ver com Picoa, forma feminina de Picão, nome usado como alcunha ou apelido (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003, s. v. Picoas)? De momento, não é possível reunir elementos para uma resposta.

Acrescente-se que não se regista picuá na aceção de «besta (arma)». Já quanto a ser usada como «sorvedouro de dinheiro», talvez pela noção de «dinheiro» se encontre alguma afinidade semântica, porque está dicionarizado picuar, «guardar (em picuá), acumular», um verbo derivado de picuá (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001). Mas fica por esclarecer como de «acumular» se passou ao sentido contrário, «gastar».

Pergunta:

Devemos escrever «roçaste no meu casaco», ou «roçaste o meu casaco»?

Resposta:

O verbo roçar , na aceção de «tocar ao de leve alguém ou alguma coisa», ocorre em duas construções:

a) com complemento direto:«Os lábios dele roçavam os meus» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 2001, s. v. roçar);

b) com um complemento oblíquo (isto é, um complemento introduzido por preposição): «O gato roçou nas minhas pernas» (idem, ibidem).

Outros exemplos, colhidos na literatura do século XIX:

(1) «O seu braço roçava o ombro do pároco: Amaro sentia o cheiro da água-de-colônia que ela usava com exagero.» (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro, 1875)

(ii) «Não foi, não! Este burel que há tantos anos me roça no corpo, estes cilícios que mo desfazem, os jejuns, as vigílias, as orações nada obtiveram ainda de Deus» (Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 1846; note-se que o me tem valor de posse em relação «corpo», pelo que não faz parte da sintaxe do verbo).

O verbo em apreço pode ainda ser usado reflexivamente e, nesse ca...

Pergunta:

Na frase «O livro é deles», qual é a classe morfológica de deles?

Pronome possessivo, ou pronome pessoal contraído?

Resposta:

As formas dele(s) e dela(s) não têm uma classe de palavras própria.

São grupos preposicionais constituídos pela preposição de e pelos pronomes tónicos ele(s) e ela(s), ou seja, trata-se de contrações. Sobre estas formas, observa a Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 906):

«Na 3. pessoa canónica, os pronomes possessivos são equivalentes a sintagmas preposicionais introduzidos pela preposição de seguida da forma oblíqua do pronome: ou seja, o seu pai é equivalente a o pai dele, a o pai dela, a o pai deles ou a o pai delas

Obs.: Na citação, por «3.ª pessoa canónica» pretende-se referir o possessivo que corresponde aos pronomes pessoais de 3.ª pessoa, cuja forma de sujeito é ele, ela, eles e elas; por «forma oblíqua», entende-se a forma que o pronome pessoal tem depois de preposição; ex.: «por mim» (eu), «em ti» (tu), «sobre ele» (ele – são iguais a forma preposicionada e a de sujeito).

Pergunta:

É correcto dizer «dicotomia de estatutos»?

Resposta:

É correto empregar a expressão em apreço, como se confirma pelo seguinte contexto (sublinhado nosso):

(1) «A par da orientação mundial de despenalização do consumo, observa-se agora a  crescente  implantação  de  uma  nova  tendência,  o  uso  de  Canabis  nos cuidados de Saúde [...]. É esta dicotomia de estatutos sociais, logo jurídicos, que cabe analisar e é sobre ela que  iremos tomar posição.» (Mafalda D'Almeida Matono Saias Figueira, A Canabis Medicinal no Ordenamento Jurídico Português, Faculdade de Direito, Universidade Nova de Lisboa, 2011, pág. 3)

Neste caso como noutros, a palavra significa «divisão em dois, repartição, oposição entre dois» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, s. v. dicotomia). Tem origem no grego dikhotomía, «divisão em duas partes iguais», e chegou ao português por via do francês dichotomie, termo empregado em áreas especializadas como a astronomia, a lógica e a botânica (cf. idem e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).