Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Nem bem tinha recostado a cabeça no travesseiro e apanhado o controle remoto, o telefone toca: 

– Alô... 

– Dr. Cesário, é o senhor?»

Na primeira frase acima, está correto o emprego do verbo no presente do indicativo («toca»)?

Obrigado.

Resposta:

Relativamente à frase em questão, os juízos de aceitabilidade podem ser divergentes, porque os problemas que levanta a frase apresentada são não propriamente gramaticais.

No contexto didático e numa perspetiva muito rígida da congruência entre os tempos verbais, dir-se-á que a sequência está incorreta ou não se recomenda, porque na oração «o telefone toca» o verbo deveria estar no pretérito perfeito do indicativo – «... o telefone tocou» –, para assegurar a concatenação temporal do tempo da oração precedente, no mais-que-perfeito do indicativo. Recorde-se que, quando se define o mais-que-perfeito, se diz que este tempo do indicativo «indica uma ação anterior a outra já passada» (Dicionário Houaiss); p. ex.: em «o pai tinha partido para a guerra, quando ele nasceu» (cf. idem), a forma «nasceu» permite ancorar a referência temporal do mais-que-perfeito do indicativo «tinha nascido» (ou, na forma simples, nascera).

Mas, se, no caso em apreço, a forma toca, no presente do indicativo, é interpretável como um presente histórico em equivalência com o pretérito perfeito do indicativo («toca» = «tocou»), então, a coerência temporal entre as orações constitutivas da frase pode não ficar comprometida. E, se o presente histórico é equivalente ao pretérito perfeito, então é de prever que, numa série de orações, o presente histórico ocorra articulado ao mais-que-perfeito do indicativo, tal como o pretérito perfeito do indicativo. E parece que assim é, porque a (nossa) intuição gramatical não rejeita o exemplo em discussão.

Assinale-se, porém, que, para Celso Cunha e Lindley (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 449) o presente histórico pode aparecer em orações coordenadas com outras que apresentam o pretérito perfeito do indicativo em situações que «não são de imitar»...

Pergunta:

A palavra margem é da família de mar?

Obrigada!

Resposta:

Não se trata de palavras da mesma família, porque as origens latinas de mar e margem são muito diferentes.

O substantivo mar vem «[...] do lat. mare, is, "mar" [...]» (Dicionário Houaiss), enquanto margem se desenvolveu «[...] do lat. margo, inis, "borda, margem, extremidade, beira; fronteira, raia; umbral, limiar" [...]» (idem). Poderíamos pensar que os étimos latinos tivessem algum parentesco mais remoto, mas a verdade é que o latim mare se liga ao indo-europeu *mori-, «mar», ao passo que margo se relaciona com outro radical do indo-europeu, *merg-, «borda, rebordo, limite, margem», donde também vem o germânico *marko, que deu mark em inglês e, em português, marca, que é palavra de origem germânica (sobre as origens indo-europeias dos étimos latinos de mar e margem, consulte-se, em inglês, o Online Etymology Dictionary).

Pergunta:

Que quer dizer «figuras de "Saxe"»?

Resposta:

Trata-se provavelmente de figuras de porcelana feitas na Saxónia, região do Leste da Alemanha.

Com maiúscula, Saxe significa o mesmo que Saxónia. Entre Saxónia e Saxe, tem-se dado preferência à primeira forma, porque a segunda foi rejeitada pelos normativistas do século XX por ser um galicismo. Por exemplo, Rebelo Gonçalves, no seu Vocabulário da Língua Portuguesa, de 1966, registava só Saxónia, observando que este nome «pretere a forma Saxe (galicismo)».

Contudo, alguns dicionários consignam saxe como nome comum e com minúscula inicial, no sentido de «qualquer objeto ou figura de porcelana fabricado na região de Saxe ou Saxônia», conforme o registo respetivo no Dicionário Houaiss (ver também o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). Quanto à origem desta palavra, acrescenta a mesma fonte: «[do] francês saxe (1847), 'porcelana de Saxe', do topónimo Saxe, nome de uma região da Alemanha, célebre por sua porcelana». Não parece existir doutrina prescritivista que condene saxe; sendo assim, afigura-se adequado escrever «figuras de saxe» – com minúscula, repita-se – para referir figuras feitas de porcelana da Saxónia.

Pergunta:

Qual a forma correcta de utilizar o verbo começar, na seguinte situação: «Começar de chover», ou «começar a chover»?

Obrigado.

Resposta:

Prefere-se «começar a chover», mas «começar de chover» não é forma incorreta.

Como auxiliar, o verbo começar tem geralmente associada a preposição a: «começou a chover». No entanto, registam-se usos literários com de, sem que se possa afirmar que este uso difere semanticamente de «começar a»: «começaram de subir a elas e...» (António Vieira, Cartas, Clássicos Sá da Costa, I, in Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho).

Sobre a perífrase verbal formada por «começar de...», observou Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dúvidas e Subtilezas do Idioma Português, 1958): «Nunca foi erro. Bons autores apresentam vários exemplos desta regência. Por exemplo: começasse de usar... (Décadas, Barros, I, 337, ed.1778). Mais chegado ao nosso tempo, Herculano escreveu: o céu começou de toldar-se. (Lendas e Narrativas, pág. 28, II, 17.ª ed.) [...].»

Note-se, porém, que atualmente «começar de» é um arcaísmo, a avaliar pela sua ausência dos dicionários de verbos recentes (Dicionário Sintático de Verbos de W. Busse, Almedina, 1995;

Pergunta:

Um acto que prejudica um certo objecto, composto pela palavra lesa-[objecto], como lesa-majestade ou lesa-pátria, se o objecto for masculino, lesa- deve concordar em género com o objecto? Por exemplo, devemos dizer (e escrever) leso-idioma, ou lesa-idioma?

Resposta:

O elemento de composição lesa de lesa-pátria é um adjetivo variável e, portanto, deve concordar com o substantivo a que se associa: leso-idioma, portanto, porque idioma é masculino. Compare-se com outros casos, como o de leso-patriotismo (Dicionário Priberam).