Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A expressão «puseram empenho» está correta? Refiro-me à utilização do verbo pôr antes do substantivo empenho...

Resposta:

A expressão «pôr empenho» está registada no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa (Porto, Livraria Chardron e Lello e Irmão Editores, 1985), de Énio Ramalho, com o significado de «interessar-se muito por» e abonada pela seguinte frase (mantém-se a ortografia original): «O director-geral pôs muito empenho na tua nomeação para esse cargo.»

Pergunta:

Se uma estátua tiver a forma de pessoa, é antropomórfica; se for de um animal, é zoomórfica; se for a estátua de um centauro, é antropozoomórfica; e se tiver a forma de uma planta ou de um fruto, é "fitomórfica"? Não encontro o vocábulo em nenhum dicionário.

Obrigado.

Resposta:

O adjetivo fitomórfico está registado no Dicionário Houaiss com o significado de «que apresenta características morfológicas semelhantes às dos vegetais»; logo, uma estátua com a forma de uma planta ou um fruto, ou seja, com a forma de vegetais, é uma «estátua fitomórfica». Também se encontra a palavra no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, no Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, e no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras.

Pergunta:

Gostaria de saber qual das duas palavras seria a correta – terrenalidade ou terrenidade – relativamente a «qualidade ou estado de terreal ou terrenal». Tenho em vista, com isto, buscar a tradução da palavra inglesa earthliness.

Obrigado.

Resposta:

Qualquer das formas é possível, mas, tendo em conta a oposição entre materialidade e espiritualidade, o termo tradicionalmente usado é mundanidade e mundanalidade, no sentido de «sistema de vida que apenas valoriza os bens materiais. Obs.: p. opos. a espiritualismo» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

É correcto dizer: «A batalha está sendo travada», como que dizendo «a batalha está em andamento», ou «a peleja está sendo pelejada» (inglês, «The battle is being held»)?

Mais: se o verbo travar vem do nome trave, como se explica que travar signifique, também, «começar, dar início a»; e «travar de» signifique «agarrar, lançar mão de»? Que travar signfique «fazer reduzir o movimento» é-me compreensível a partir do étimo da palavra; porém, naqueles dois casos, não vejo relação alguma entre o étimo do verbo e o significado que ao verbo é dado. Há aí alguém que possa esclarecer isto?

Muito grato.

Markus Dienel

Resposta:

Está totalmente correto o uso apresentado na pergunta.

Travar, que significa fundamentalmente «segurar com força», «prender» e «refrear, usa-se também no sentido de «cruzar» ou «entrecruzar» (também «empunhar», segundo o Dicionário Houaiss: «travar do punhal»), no que parece ser uma extensão semântica de «dificultar ou impedir os movimentos a»: «travar espadas», «os floretes travavam-se nervosamente» (idem). Por transferência de sentido, a expressão terá abrangido a própria situação em que se usam armas: «travar uma batalha», «travar luta».

Refira-se que este uso de travar encontra paralelo no verbo espanhol trabar, que tem formação equivalente à de travar, como derivado de traba (em português, trave), do latim trabs, bis, «trave, viga», segundo Joan Coromines e José Antonio Pascual, Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, edição em CD-ROM (ver também Dicionário Houaiss, s. v. trave). De acordo com estes autores catalães, trabar tinha como sentido fundamental o de «atrapalhar, reter ou segurar com trave», e daqui emergiram as aceções de «lançar-se sobre alguém para o repreender», «repreender, criticar», «lutar, pelejar».

Pergunta:

Faz sentido que na mesma oração surjam um complemento direto e um oblíquo? Se sim, quais os verbos que podem pedir as duas funções sintáticas simultaneamente. São os transitivos diretos/indiretos?

Obrigada e continuação do excelente trabalho.

Resposta:

Há efetivamente verbos que selecionam dois argumentos que se realizam como complemento direto e complemento oblíquo:

(1) Pus a mala [complemento direto] no porta-bagagens [complemento oblíquo]

Como pôr, identificam-se os seguintes verbos, de acordo com a Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 1197) – a lista não é exaustiva:

acusar (alguém de alguma coisa)
afastar (alguém de alguém/alguma coisa)
colocar (alguém em alguma coisa)
confundir (alguém com alguém/alguma coisa)
impedir (alguém de alguma coisa)
obrigar (alguém a alguma coisa)
proibir (alguém de alguma coisa)

No Dicionário Terminológico, que, em Portugal, se destina a apoiar o ensino da gramática na escolaridade básica e secundária, estes verbos são chamados transitivos diretos e indiretos tal como os que se usam com complemento direto e indireto (por exemplo, dar).