DÚVIDAS

À volta de orações reduzidas de gerúndio

Domino o português como língua estrangeira. Há algum tempo, procuro entender as frases com gerúndio a partir de um ponto de vista pragmático, isso quer dizer que, sem cair no estudo da nomenclatura para diferentes orações subordinadas (onde o gerúndio se mostra importante), parto para o estudo simples do significado de cada oração com gerúndio que encontro. E eis que uma frase interessante cruzou o meu caminho, cito-a dentro do contexto:

«Turistas, há poucos na semana, só o suficiente pra dar ao pessoal que vive de conduzir charretes algo que fazer. Quase não se nota sua presença, tirando fotos e almoçando peixe frito.» (Paraíso em cativeiro, Cecilia Giannetti, Folha de São Paulo, C2, 21.10.2008)

O texto evidentemente está escrito em estilo não formal, como é indicado pela forma "pra" em vez de para.

Mas mesmo assim o uso do gerúndio aqui me intriga e me instiga. O que se quer dizer aqui me parece ser o seguinte: «Quase não se nota a presença dos poucos turistas que costumam tirar fotos e almoçar peixe frito.»

Mas a frase «Quase não se nota sua presença, tirando fotos e almoçando peixe frito» parece então recorrer ao gerúndio para referir-se a um substantivo («os turistas») de uma frase anterior. Mesmo sendo um estilo coloquial, toda a forma de "referenciar as coisas" nesta frase me parece um pouco solta, irregular e confusa demais? Ou estou eu errado, e esta frase está corretíssima no que tange os gerúndios e sua função sintática?

Resposta

É normal que certas construções sejam um pouco confusas para quem tem o português como língua estrangeira. A frase que nos enviou está correcta do ponto de vista gramatical, apesar de se enquadrar num registo informal.

«Turistas, há poucos na semana, só o suficiente pra dar ao pessoal que vive de conduzir charretes algo que fazer. Quase não se nota sua presença, tirando fotos e almoçando peixe frito.»

A primeira oração é uma construção de foco. A ordem natural seria: «Há poucos turistas na semana.» Deve ser isso que gera confusão e que faz com que não relacione o gerúndio em «Quase não se nota sua presença, tirando fotos e almoçando peixe frito» com o substantivo da frase anterior, «os turistas», pois este elemento não está na sua posição natural, e está muito longe do gerúndio. Mas, na verdade, «sua», em «sua presença», é referente a «os turistas», é um pronome anafórico, ou seja, retoma um elemento que já foi mencionado no texto (ou discurso, no caso da oralidade).

O gerúndio expressa uma acção em curso, que pode ser anterior ou posterior à do verbo da oração principal. Quando posposto à oração principal, pode, por vezes, ser imediatamente posposto (ex.: «Há poucos turistas na semana, tirando fotos e almoçando peixe»), ou conter outras orações pelo meio, como é o caso da frase que estamos a analisar. Quando isto acontece, é necessário um elemento que retome o antecedente. Na frase em questão, esse elemento é o pronome «sua»; «sua presença» equivale a «presença dos turistas». A anáfora é um processo de coesão textual usado em praticamente todas as línguas, é um processo de economia.

Imagine-se um pequeno texto como o seguinte:

(a) * A Maria voltou para a casa da Maria muito tarde, despiu a Maria, e deitou a Maria logo. A Maria dormiu bem nessa noite, sonhando com o lugar da Maria preferido.

Para qualquer falante de português, esta frase é ininteligível. Não faz qualquer sentido, é uma cadeia de redundância. Para evitar isto, a língua recorre a mecanismos de economia, que tornam o discurso mais fácil. Um desses mecanismos é o uso de elementos anafóricos (ex.: Ela/sua/se/etc.), que retomam um elemento antecedente, referido anteriormente no discurso. Desta forma, o mesmo texto pode ser simplificado da seguinte maneira:

(b) A Maria voltou para sua casa muito tarde, despiu-se e deitou-se logo. Ela dormiu bem nessa noite, sonhando com o seu lugar preferido.

Voltando à frase, depois de vermos que as orações de gerúndio «tirando fotos e almoçando peixe frito» se referem à oração principal «turistas, há poucos na semana», comentemos agora a função sintáctica dessas orações. Na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra, as orações deste tipo são classificadas de orações reduzidas de gerúndio/orações adjectivas: «O emprego do gerúndio com valor de ORAÇÃO ADJECTIVA tem sido considerado por certos gramáticos um galicismo intolerável. Cumpre, no entanto, acentuar que é antiga no idioma a construção quando o GERÚNDIO expressa a ideia de actividade actual e passageira. (...) Construção em tudo semelhante à que vigorou na língua até começos do século XVIII e que continua no português do Brasil.»

São dados alguns exemplos pelos mesmos autores, vejamos apenas um, que se aproxima da construção em análise:

Virou-se e viu a mulher/dando com a mão/fazendo sinal para que voltasse. (Luís Jardim, BA, 18.)

Conclui-se que a frase está certa sintáctica e semanticamente. O que a torna confusa é a distância entre os elementos referentes: «turistas, há poucos (...), tirando fotos e almoçando peixe frito».

Esperamos ter ajudado.

Parabéns pelo seu excelente português!

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa