DÚVIDAS

Ainda palavras e expressões da obra Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio

Apresento ao Ciberdúvidas os meus agradecimentos pela ajuda na interpretação de Mau Tempo no Canal, de V. Nemésio.

Na continuação da vossa estimada resposta n.º 26 748, venho pedir o favor de me auxiliarem nas seguintes palavras e expressões contidas na obra:

«Mesa de pé de burro» — 2.ª pág., Cap. XII.

«Fazer marrajanas/marrajana» — 5.ª e 6.ª pág. do mesmo cap.

«Reseima» — 6.ª pág. do mesmo cap.

«Travar-lhe do braço» — 4.ª pág. do Cap. XIV.

«Cachimbeta» — 3.ª pág. do Cap. XVI.

Obrigado.

Resposta

Tal como já foi dito na resposta N.º 26748, os termos e as expressões dos falantes açorianos, muitas vezes registados de modo a representar a sua pronúncia peculiar, tornam-se um entrave à compreensão do seu significado e, quantas vezes, dificultam a interpretação do sentido de toda a frase.

Das expressões que o consulente, desta vez, nos apresenta, destaca-se uma palavra que, para nós, é bastante invulgar, mas em que detectamos algo de negativo, de desagradável, pois surge em contextos em que parece estar associada a motivo de crítica — marrajanas presente em dois trechos do cap. XII: no discurso irónico de quem passa «na rua de Jesus e visse luz na vidraça [do escritório do «saguão» de Januário Garcia], referindo-se-lhe assim: «Lá está o Garcia a fazer marrajanas…» (Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Lisboa, Relógio d’Água, 2004, cap. XII, p.143) e, também, no final do capítulo, quando o narrador recria o olhar/o pensamento de Januário sobre os advogados da Horta:«no cível, o dr. Luís da Rosa — não lhe ficando atrás, para uma marrajana, o espertalhão do Leal». Como justificativo do atributo de «espertalhão», uma marrajana parece traduzir algo não muito sério nem honesto. Ora, o termo marrajana (sub. f.)  significa precisamente «aldrabice», segundo o estudo de Maria Alice Borba Lopes Dias sobre a linguagem da ilha da Terceira (Maria Alice Borba Lopes Dias, Ilha Terceira, Estudo da  Linguagem e Etnografia,1982, p.466).

Não encontrámos nessa mesma obra referência a nenhum dos outros termos e expressões que nos coloca, talvez por não serem considerados pela autora como regionalismos açorianos. Resta-nos, portanto, procurar descodificar o seu sentido a partir do contexto em que surgem.

Relativamente a mesa de pé de burro (cap. XII, p. 140): trata-se, decerto, de uma peça de mobiliário que, de acordo com o texto, se destaca na sala de jantar da «casa da Ribeira dos Flamengos, comprada por Januário ao Frade do Salão, que a comprara a Diogo Dulmo com recheio e tudo, conservava-se por dentro no dispositivo em que os Clarks a tinham ao tempo da laranja: quartos com camas de torcidos, a casa de jantar abaixo, descendo-se uns degraus, com mesa de pé de burro […]». Assim como o narrador evidencia as «camas de torcidos» nos quartos, a «mesa de pé de burro» é a peça que valoriza a sala de jantar. Tratando-se de uma casa que pertencera a uma família inglesa de um estatuto elevado, a sua decoração destaca-se pelo requinte, razão pela qual o narrador as descreve como marca de diferença. A «mesa de pé de burro» deve ser uma mesa cujo pé, ao centro, deve ser uma peça forte, robusta e trabalhada. Talvez seja pelo fa{#c|}to de suportar a mesa, que se designe tal pé de «pé de burro». No Continente, é conhecida a «mesa de pé de galo», mesa pequena cujo pé tem a forma de uma pata de galo (com três pontas). Enquanto esta é um acessório na decoração de uma sala, a «mesa de pé de burro» do romance é uma peça central, dominante e essencial na sala de jantar.

Quanto à palavra reseima, incluída na frase «o cheiro adocicado à reseima do laranjal» (Cap. XII, p. 144), aparece associada a algo do laranjal que produza um cheiro adocicado. Sabendo que a pronúncia açoriana é diferente da do português europeu continental e que Mau Tempo no Canal é um «romance escrito num alfabeto fonético» (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a Obra e o Homem, Lisboa, Arcádia, 1978, p. 133), relacionámos, tendo em conta a semelhança fonética e gráfica, reseima com resina. A resina escorre no tronco das árvores e tem um cheiro adocicado. E, então, de laranjeiras…!

Por sua vez, a expressão «travar-lhe do braço» (Cap. XIV, p. 156) — «Roberto, com ares de mistério, travou-lhe do braço lentamente e subiram até à varanda» — não nos causa muita estranheza. «Travar» significa, para além do sentido mais comum, «agarrar, tomar, segurar» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora). Portanto, nessa frase, deverá ter o sentido de «segurou-lhe o braço», «pegou-lhe no braço», gesto afectuoso para conduzir Margarida à varanda.

cachimbeta parece sugerir uma espécie de alcunha pela qual «o guarda do Granel do Clark» é conhecido, talvez porque tal personagem tenha o hábito de fumar cachimbo. Como qualquer alcunha, esta surge carregada de troça, de sarcasmo, o que é denunciado pela forma jocosa do diminutivo cachimbeta. Reparemos no relato que o narrador faz do modo como o guarda do Granel é imitado por Ângelo: «O guarda do Granel do Clark, o cachimbeta!... — A cara de Ângelo, debruçado nas costas de uma cadeira, tomara a expressão de Roberto à janela da rua do Mar. Com um lápis na boca a fingir de cachimbo, parecia ter diante as marés do Canal» — e motivo de gozo do grupo  — «Laura, com um ataque de riso, balouçava-se no canapé; as lágrimas saltavam-lhe aos dedos levados aos olhos» (Cap. XVI, p. 169).

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