DÚVIDAS

Erros lusos e erros brasileiros

Gostaria de responder ao consulente português Ricardo Nobre que defende o uso corrente das palavras pertencentes ao pronome vós. O uso das palavras vosso, vossa, vos, convosco com terceira pessoa de plural (vocês) é completamente errado e deve ser hoje evitado. Deve saber-se que com as formas da terceira pessoa (você, vocês) só se podem usar palavras seu, sua, o(s), a(s), lhe(s), com você(s) e consigo. Vejamos agora duas frases, uma lusa e uma brasileira.

1. Continuem com o vosso trabalho! Sempre vos digo isso mas nunca me obedecem.
2. Continue com teu trabalho! Sempre te digo isso mas você nunca me obedece.

A fala popular lusa mistura, como vimos, vocês e vós e a fala popular brasileira mistura você e tu. Deve ser:

1. Continuem com o seu trabalho! Sempre lhes digo isso mas nunca me obedecem./
Continuai com o vosso trabalho! Sempre vos digo isso mas nunca me obedeceis.
2. Continue com seu trabalho! Sempre lhe digo isso mas você nunca me obedece./Continua com teu trabalho! Sempre te digo isso mas nunca me obedeces.

As misturas são erros enormes quanto à gramática, mas quanto à semântica não há muita diferença. Por isso há pessoas, os que desconhecem a gramática, dizerem que misturar vós com vocês e tu com você seja correto.

Se quisermos aceitar a mistura lusa (quero apresentar-vos a vocês), então, devíamos aceitar também a mistura brasileira (eu te amo e você me ama). É interessante reparar que em Portugal ninguém mistura tu e você (a não ser que se trate de uma brincadeira) e que no Brasil ninguém mistura vocês e vós (também, a não ser que se trate de uma brincadeira).

A presença dessas misturas em português é óbvia. Elas pertencem à linguagem popular e vulgar. O perigoso é elas entrarem na língua formal.

O livro "Português sem fronteiras" recomendado pela Faculdade de Letras em Lisboa como o melhor livro de português para os estrangeiros introduz as palavras vosso, vos, convosco sem mencionar o pronome vós, ou seja, apresenta o uso destas palavras com o pronome vocês. Acho uma vergonha porque assim milhares e milhares de pessoas a estudar português vão aprender a falar erradamente.

O que dizer sobre o cartaz de Ministério brasileiro da Saúde no qual se lê: «Se você não se cuidar a aids vai te pegar»?

Não acho justo o erro brasileiro ser sempre considerado erro e o erro lusitano entrar nos livros de ensino.

O que vocês acham sobre esse problema?

Obrigado.

Resposta

Concordo que as frases correctas/corretas são as do seu segundo grupo, em que, para Portugal, respectivamente associa continuem com seu, lhes com obedecem, continuai com vosso e vos com obedeceis.

Devo dizer-lhe, no entanto, que submeti as suas frases erradas a um grupo de pessoas experientes, formadas no ramo das letras, e que algumas não as consideraram assim tão incorrectas/incorretas.

Explico este facto/fato pelo seguinte: A flexão verbal na segunda pessoa do plural, que já foi de deferência, deixou de o ser, e ultimamente está mesmo a desaparecer, pelo menos na região de Lisboa (é o devir da utilização, pelas gerações, do património/patrimônio linguístico/lingüístico, neste caso com empobrecimento da língua); mas os pronomes respectivos, vos, vosso/a/s mantiveram-se actuantes/atuantes. Por outro lado, pela mesma razão, o tratamento de deferência com a flexão verbal na terceira pessoa do plural está a confundir-se com o tratamento de intimidade (nos nossos dias, a professora diz às crianças: `podem sair´, como dizemos: `os senhores sentem-se, fazem favor!´). Finalmente você/s (abreviatura de Vossa/s Mercê/s) perdeu o carácter/caráter de tratamento de deferência e presentemente equivale a um tratamento por tu. Então, na prática é o pronome que distingue a deferência: `Continuem com o seu trabalho, meus senhores´; `sempre lhes digo isso, mas os senhores nunca me obedecem´. Ou: `continuem com o vosso trabalho, rapazes´; `sempre vos digo isso, mas vocês (rapazes) nunca me obedecem´; e estas últimas frases pode parecer que não têm coesão, mas são perfeitamente coerentes nos actuais/atuais hábitos linguísticos/lingüísticos de muitos falantes portugueses.

Quanto ao Brasil, como sabe o pronome `tu´ só é muito restritamente usado. Para os meus irmãos brasileiros, tratar por você é mesmo tutear, na ausência do pronome pessoal recto/reto da segunda pessoa do singular. A frase: «Se você não se cuidar, a aids vai te pegar.» pode considerar-se desagregada para um português, no conjunto das duas orações; mas é também perfeitamente coerente no Brasil. E diga-me: é possível impor a um brasileiro que escreva `Se tu não te cuidares´ quando ele não usa esta expressão por sistema?

Ambos erros enormes, cá e lá? Para os vernaculistas, talvez… Não, para o utente indiscriminado do povo, que também é dono da língua (não me refiro a populacho). Ora as comunidades cultas, formadas pelos gramáticos, são no entanto também povo e, assim, é natural que adoptem/adotem a linguagem generalizada quando comunicam com esse utente indiscriminado.

Claro que as comunidades cultas têm outras responsabilidades. Pelo menos, devem ponderar sempre a conveniência em escrever como mandam as regras, sobretudo em obras didácticas/didáticas. E as regras são as que indica, prezado companheiro interessado no estudo da língua portuguesa.

Ao seu dispor,

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa