DÚVIDAS

Narrador não-participante

Coloco estas perguntas porque me parecem pertinentes e que me deixaram francamente em dúvida.

 

Qual a definição correcta de narrador participante? Quais são realmente os tipos de narradores existentes na língua portuguesa? Estas perguntas surgiram depois de, em conjunto com uma colega, analisar o seguinte texto:

«Conheço um menino que gosta muito de animais. Gosta de gatos, cães, periquitos, ratos, eu sei lá... Às vezes chego a pensar que ele gosta de todos os animais.

Há tempos esse menino pediu ao pai para lhe dar um cão, um cão grande, de olhos meigos e pêlo macio.

— Ó pai, gostava tanto...

— Um cão?! Nem pensar nisso! — disse logo o pai. — A casa é pequena e o cão nem tinha espaço para se espreguiçar. Nem penses nisso...

Como o menino é realmente muito amigo dos animais acabou por concordar. Pois claro, o animal não podia ser feliz num quinto andar com elevador e vista para a janela do senhor da frente que não tem gato nem cão nem periquito...

Mas o gostinho de ter um animal de estimação voltou com mais força e um dia chegou-se à mãe. Falou-lhe de um gato branco pequenino, muito bonito, muito meigo. (...)»

a) Uma 1.ª análise leva-me a classificar o narrador como não participante, pois este não participa na acção.

b) Após nova abordagem, a palavra conheço chamou-nos a atenção, pois não é ela indicadora de participação na história?

Com os melhores desejos de um bom trabalho,

Resposta

Quando um texto narrativo está escrito na primeira pessoa, somos naturalmente levados a questionar-nos sobre a classificação do narrador, pois o seu discurso sugere a ilusão de proximidade com os intervenientes na história que narra. Não é frequente ver-se um narrador de primeira pessoa nos textos de cariz autobiográfico, em que há coincidência entre o narrador e o protagonista? Ou, então, a narrar alguma história que viveu, mesmo não sendo a personagem principal? Temos, por isso, uma certa dificuldade em gerir a ideia de que esse «eu» que conta poder não estar presente na ação/história que nos conta. Mas, para nos libertarmos de qualquer dúvida sobre a sua classificação, devemos lembrarmo-nos de que «a persona do narrador não deve ser caracterizada e definida em função de formas gramaticais, mas em função do seu estatuto narrativo» (Vítor M. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1983, p. 761).

Não há, portanto, lugar para dúvidas de que o facto de o narrador se manifestar como um «eu» explícito que conta a história não implica que seja uma das personagens da narrativa. Nesse caso, ele é a voz que narra, que produz o texto narrativo, e que, ao assumir-se como narrador de primeira pessoa, se quer demarcar como alguém que conhece a história que vai narrar.

Ora, se «não é co-referencial com nenhuma das personagens da diegese e se não participa, por conseguinte, na história narrada, esse narrador é classificado como heterodiegético» (idem), ou usando uma terminologia mais comum, como não participante, distinguindo-se, assim, do narrador autodiegético (co-referencial com o protagonista) e do narrador homodiegético (co-referencial com uma das personagens), os que participam na a(c)ção, quer como personagem principal, quer como secundária.

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