DÚVIDAS

Sobre o âmbito de personagem

Agradeço a vossa resposta. Aproveito este momento para louvar o trabalho que têm feito, esclarecimento de dúvidas de forma muito clara, e o contributo que têm dado para a boa prática da língua portuguesa.

Queria que me explicassem porque é que Carnaval da Vitória é uma personagem [da novela Quem Me Dera Ser Onda, de Manuel Rui], porque no seio dos professores há duas posições. Uns acham que é personagem, e outros defendem que ele não pode ser personagem porque os animais só podem ser personagens nas fábulas.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta

A crítica literária está, realmente, dividida, mas não nos cabe a nós dar razão a uma ou outra análise. A teorização do conceito de personagem vem já de Aristóteles, mas até aos dias de hoje o conceito e a sua aplicação têm vindo a desenvolver-se, e, apesar de não nos podermos cingir ao conceito aristotélico mais básico de personagem, como mimésis congénita, este conceito existe, e é correctamente defendido por muitos teóricos. Já o argumento em que se sublinha que apenas nas fábulas os animais podem ser personagens também não é decisivo para avaliar o papel de Carnaval da Vitória em Quem Me Dera Ser Onda (1982), pois a novela está escrita à semelhança de uma fábula, no sentido em que, sem dúvida alguma, o elemento central e alegórico é o porco. Mas estender esta análise foge ao que nos diz respeito.

Podemos concluir que ambas as posições que consideram ou não Carnaval da Vitória uma personagem são legítimas, desde que devidamente fundamentadas. Contudo, podemos apontar que, na opinião do autor, Manuel Rui, que tenho a maior honra em conhecer pessoalmente, Carnaval da Vitória é uma personagem, e isto pode (ou não) servir de argumento para desequilibrar a balança.

A opinião de Manuel Rui está mesmo registada numa entrevista feita por Marta de Oliveira, da qual retirámos e transcrevemos abaixo a parte mais relevante para esta questão:

« O riso, a caricatura, a ironia, o humor e até o grotesco estão ao serviço da crítica da sociedade. Considera-os a catarse da sua narrativa?

MR: Não. Olha, primeiro o problema da sátira. O Manuel Ferreira escreveu sobre isso. Dizendo que, logo no primeiro livro, Regresso Adiado é uma escrita chaplinesca. Desta forma, quando as pessoas estão a rir, têm de chorar. Portanto, não é tanto assim. Ele teve oportunidade de verificar isso mesmo quando se pôs Quem Me Dera Ser Onda em palco, em teatro. Há pessoas que saíam desagradadas com aquilo. Com a personagem ser porco e tal...

 De facto, essa personagem provoca-nos momentos hilariantes. Será legítimo estabelecer uma analogia entre as suas atitudes e algumas atitudes burguesas?

MR: Naturalmente que sim, mas não só. Podemos estabelecer a analogia com uma burguesia emergente, uma burguesia pós-independência. Num espaço, num tempo Fevereiro), nas canções contra África do Sul e contra o poder, tudo isso leva ao Carnaval o Carnaval da Vitória! Contudo, no final, o próprio Carnaval da Vitória acaba morto... As analogias são evidentes.

Por vezes, quando escrevemos um livro, as personagens podem criar um caminho próprio. Actualmente, tenho um esquema das personagens de Quem Me Dera Ser Onda, mas fi-lo a posteriori ; contrariamente a Rioseco , onde fiz um esquema das personagens antes da escrita da própria obra.»

 

Esperando que tenha ficado clara a explicação, resta-nos agradecer as amáveis palavras dirigidas à equipa do Ciberdúvidas,  e reiterar que estamos sempre à disposição.

 

Fonte Bibliográfica:

OLIVEIRA, Marta de. 2008. Na(rra)ção satírica e humorística: Uma leitura da obra narrativa de Manuel Rui. Edited by L. Electrónicos. Porto: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (pp. 165-166).

 

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