DÚVIDAS

Valores de pois

Antes de qualquer coisa, quero aqui expressar meus agradecimentos aos responsáveis pelo sítio, bem como aos seus colaboradores, pois muitas vezes foi somente aqui que consegui obter esclarecimentos para várias dúvidas acerca do nosso querido português. 

A pergunta é em relação ao uso da conjunção pois em início de frase, que em minha vasta pesquisa, inclusive aqui neste sítio, trouxe-me respostas que afirmam não ser possível tal uso. Contudo, transcrevo aqui dois exemplos de Machado de Assis, dentre muitos que encontrei na obra deste autor, os quais atestam esse tipo de uso:

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo 15:

«Primeira comoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser, na criação bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse efeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor. Pois foi a mesma coisa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito anos, deves lembrar te que foi assim mesmo.»

Quincas Borba, capítulo 6:

«– Humanitas é o princípio. Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, — ou, para usar a linguagem do grande Camões: Uma verdade que nas coisas anda, Que mora no visíbil e invisíbil. Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?»

[O Dicionário Houaiss regista o uso de pois com o valor adversativo: «1.3 conj.advrs. introduzindo o segmento que denota basicamente uma oposição ou restrição ao que já foi dito; mas, porém, no entanto ‹– Você está tranquilo? P. eu estou na maior ansiedade› ‹afirmava que a tudo se afeiçoara, p. qual o motivo da partida antecipada?›»]

[Contudo], nos dois exemplos de Machado que transcrevi, o pois em ambos os começos de frase não poderiam, de maneira alguma, ser trocados por mas [...], visto que se fosse feita a alteração, as frases deixariam de fazer sentido no contexto em que estão inseridas.

Se o pois no começo de frase funciona como conjunção coordenativa explicativa ou subordinativa causal, ou de alguma outra forma, não saberia dizer com certeza [...].

Transcrevo aqui mais exemplos deste tipo de uso do pois, de dois escritores acima de qualquer dúvida, para corroborar minha "tese":

Prefácio de Sagarana, escrito por Paulo Rónai em 1946.

«As nove peças que formam o volume Sagarana continuam a grande tradição da arte de narrar. O gênero peculiar do autor é, aliás, a novela, e não o conto. A maioria das narrativas reunidas no livro são novelas, menos por sua extensão relativamente grande do que pela existência, em cada uma delas, de vários episódios – ou “subistórias”, na expressão do escritor –, aliás sempre bem concatenados e que se sucedem em ascensão gradativa. O gênero, em suas mãos, alcança flexibilidade notável, modifica-se conforme o assunto, adapta-se às exigências do enredo. Pois esta maleabilidade é justamente uma das características da novela moderna.»

Entendo que a conjunção em destaque poderia ser substituída pela conjunção porque ou «visto que», porém, certamente, não cabe a substituição por mas [...].

Livro Sagarana, autor Guimarães Rosa, novela “Duelo”:

«– Você conhece o Turíbio Todo, o seleiro, aquele meio papudo?... Pois é um... (Aqui, supostas condições de bastardia e desairosas referências à genitora.)

Apesar do uso da reticência, como o pois vem depois de ponto de interrogação, necessariamente está começando uma frase e, novamente, não caberia a substituição por mas [...].

Livro Sagarana, novela “Minha Gente”:

«– Que é que você está olhando, José?

É o rastro, seu doutor... Estou vendo o sinal de passagem de um boi arribado. A estrada-mestra corta aqui perto, aí mais adiante. Deve de ter passado uma boiada. O boi fujão espirrou, e os vaqueiros decerto não deram fé... Vigia: aqui ele entrou no cerrado... Veio de carreira... Olha só: ali ele trotou mais devagar...

– Mas, como é que você pode saber isso tudo, José? – indagou Santana, surpreso.

– Olha ali: o senhor não está vendo o lugarzinho da pata do bicho? Pois é rastro de boi de arribada. Falta a marca da ponta. Boi viajado gasta a quina do casco... Eles vêm de muito longe, vêm pisando pedra, pau, chão duro e tudo... Ficam com a frente da unha roída... É diferente do pisado das reses descansadas que tem por aqui...

Acima, novamente, não poderíamos fazer a substituição [por mas]?

Resposta

O vocábulo pois empregado após um ponto (final, interrogativo, exclamativo) pode ter diferentes valores semânticos. Seu uso, como já constatado pelo consulente, é encontrado em registro culto (e não só em linguagem literária): uma consulta ao Corpus do Português atestará milhares de exemplos em linguagem jornalística luso-brasileira. Logo, não se pode falar em incorreção gramatical no seu emprego.

No entanto, cabe uma importante ressalva (e este é o ponto!): tal redação não é usual/comum em textos sujeitos a avaliação ou com alto grau de formalidade – em certames ou em textos oficiais, por exemplo –, caso em que a linguagem é naturalmente mais limitada pelo que se espera da prática nesses gêneros textuais.

Cumpre dizer, claro, que as intenções estéticas de um redator rompem qualquer limite para atender à finalidade comunicativa pretendida, de modo que um segmento como «As pretensões do governo federal dificilmente encontrariam adesão entre os deputados, pois, como sabemos, a oposição iria frear os avanços na economia almejados pelo Executivo» pode ter, propositalmente, sua pontuação alterada para ressaltar o conteúdo introduzido pela conjunção causal pois, como se atesta em «As pretensões do governo federal dificilmente encontrariam adesão entre os deputados. Pois, como sabemos, a oposição iria frear os avanços na economia almejados pelo Executivo». O uso de ponto antes da conjunção causal é um recurso estilístico com fins de realce do conteúdo do segmento introduzido por ela.

Para além disso, quando o pois é empregado com valor adversativo, naturalmente é antecedido de ponto finalizando período. Eis um exemplo: «Eles disseram que a explicação não tinha sustentação. Pois estavam errados, desde o princípio!».

Há ainda outro caso apresentado pelo gramático Evanildo Bechara, que classifica o pois como «palavra denotativa de situação». Para ilustrar isso, leia o breve diálogo:

– João finalmente chegou, meu amigo!

– Pois não é que ele veio?!

O dicionário on-line Aulete apresenta outro caso de pois (advérbio de valor afirmativo) empregado com inicial maiúscula introduzindo um período, em linguagem lusitana:

– Aprecias bom vinho?

– Pois.

Há outros casos desse vocábulo empregado após ponto.

Sempre às ordens!

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