Esta língua nossa - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Esta língua nossa
Esta língua nossa

«O mirandês, o que é? Uma língua. Para que serve? Para comunicar? Claro. Para transportar cultura e história? Decerto. Mas, para quem a fala, o mirandês serve para outra coisa ainda: para ser. "Para dizer o mundo, eu tenho de usar palavras, e há coisas que eu só sei dizer em mirandês." Como falar do campo, dizia Amadeu Ferreira. Aos 64 anos, era o mais ativo defensor do mirandês. Morreu há duas semanas. Deixou a língua viva.»

[texto publicado na revista "E" do semanário "Expresso" de 14 de março de 2015, da autoria dos jornalistas Joana Beleza e Pedro Santos Guerreiro. A fotografia é de Marcos Borga.]

 

 

 

A língua vive através de quem a fala, e o mirandês vive hoje falado por uns poucos milhares, menos de 15 mil pessoas. «A dignidade das línguas não deriva, nem pouco mais ou menos, da quantidade de falantes que elas têm», rebatia Amadeu Ferreira, o maior defensor da língua falada a partir do Nordeste de Portugal. «A dignidade das línguas só pode vir de uma coisa: das pessoas que as falam.» O mirandês era a língua íntima de Amadeu Ferreira. Mas, como língua oficial desde 1999, não era nem uma língua dele nem uma língua "deles", os das aldeias de Miranda do Douro (com exceção de Atenor e Teixeira) e de mais de Vimioso (Vilar Seco, Angueira e Caçarelhos), no distrito de Bragança. O mirandês é uma língua nossa. Pelo menos, por decreto. Não é muito. Pode ser o princípio de muito.

Quando nos recebeu em sua casa, em dezembro, ele sabia que nós sabíamos: Amadeu Ferreira tinha um tumor no cérebro e uma esperança média de vida que já superara. Muito doente, quase cego, inchado pelos tratamentos, o homem que cumprira "a loucura impossível" de traduzir para mirandês "Os Lusíadas", a "Mensagem", os quatro Evangelhos da Bíblia e duas aventuras do Astérix sorria muito. Aquela seria a sua última entrevista. Esta foi a sua última entrevista. Fomos de Lisboa a Miranda sem sair do sítio.

Nascido em 1950 em Sendim, numa família pobre, Amadeu lembrou-se sempre desse primeiro choque, ao entrar na escola. Um choque entre o seu mundo, que era falado em mirandês, e o resto do mundo, o português. Com o passar dos anos, as duas línguas aprenderam a conviver dentro dele, e ele aprendeu a dominá-las para dizer as coisas. Fez parte da geração que abandonou a terra e a língua. Onde muitos tinham vergonha da sua origem, aquele jovem sendinês tinha um orgulho desmedido pelas palavras e expressões que ouvia os pais e os vizinhos usarem no dia a dia. «A vida no campo, nos anos 50, no interior do país, era uma vida difícil. Sendo filho de uma família muito pobre, tive a sorte de poder estudar, mas sempre, desde novo, trabalhei no campo. O mundo que aprendi foi o mundo do campo. E aprendi-o em mirandês.»

 

Lhuzie, meu amor

São sete da tarde, breve interrupção, é hora de ligar à mãe. Amadeu pede que lhe passem o telefone e é, como sempre, em mirandês que lhe pergunta como passou o dia. «Apenas existe uma maneira de os velhos viverem: através dos filhos», diz. «O mirandês deve deixar filhos que tenham orgulho na sua língua e não reneguem os pais.» Amadeu Ferreira deixou o mirandês em vida através dos dois filhos, mas também através da sua neta, o primeiro bebé a quem foi reconhecido o nome em mirandês, língua que palatiza o "l" inicial e que quase não usa palavras terminadas em "ia". O bebé tem ainda meses, sete meses, e não pode fazer ideia do que representa para o seu avô.

Olá, Lhuzie. Quando fores grande saberás muitas coisas sobre o teu avô. Ele escreveu-te uma carta para leres quando tiveres 18 anos. Mas antes poderás ler este poema, que talvez até decores de ouvido e de que te lembrarás quando passares horas a ver as andorinhas: 


«Quedaba, de you nino, horas a ber las andorinas
A traier barro para fazer l nui i a arredundá-lo cula peitua;
apuis, ls andorinicos de boca abierta a spera de çubiaco,
i eilhas nun bolo sien paraige a sticar la tarde.»

 

Desde o início dos anos 9o, Amadeu Ferreira escreveu dezenas de livros, traduziu centenas de páginas, publicou ensaios, deu aulas de língua mirandesa, alimentou blogues e tertúlias à volta da língua materna, teve uma crónica no jornal "Público" escrita integralmente em mirandês. Criou ainda a Associação de Língua e Cultura Mirandesa, com uma sede chamada Casa de la Lhéngua, em Miranda do Douro. Quando, por falta de saúde, o seu ritmo de trabalho foi forçado a abrandar, foram as esperanças por este bebé que lhe deram um novo impulso pela língua. A nora, Mariana Gomes, investigadora do centro de linguística da Universidade de Lisboa, e o filho, José Pedro Ferreira, investigador na área da linguística computacional no Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (CELGA-IITEC), quiseram que a sua primeira filha tivesse nome mirandês. «Sendo investigadores na área da língua portuguesa, já tínhamos conhecimento do processo de atribuição do nome. Por isso, antes do nascimento, preparámos um pedido especial por escrito com base numa argumentação jurídica com princípios bastante simples: se constitucionalmente temos direito ao nome e se os mirandeses têm direito a ver os seus direitos linguísticos reconhecidos, que direito linguístico mais básico existe do que o direito ao nome? Nenhum», explica José Pedro Ferreira. «Já fomos contactados por dois casais a perguntar como é que tínhamos conseguido, o que tínhamos feito», conta Mariana. O próximo passo será entregar nos registos uma lista de nomes mirandeses que possa vir a ser integrada na lista de nomes portugueses oficiais.

 

Um financeiro mirandês

«Se o latim era "a última flor do Lácio, inculta e bela"», o mirandês era o latim de Amadeu, frágil e em busca de proteção. Ele era seu protetor, seu patrono, seu amante descarado.» Nas últimas semanas, multiplicaram-se as homenagens e os testemunhos a Amadeu Ferreira, mas escolhemos esta frase por várias originalidades: é dita por um brasileiro, não por um português; por um jornalista de mercados financeiros, não de cultura; e porque o seu autor não conheceu Amadeu Ferreira – mas ficou deslumbrado com Norteando, um dos seus últimos livros, publicado no final do ano passado. «Conheci, por assim dizer, o Amadeu numa noite tórrida e húmida do verão do Rio de Janeiro, dessas que dão fama à cidade», conta Geraldo Samor, uma autoridade no jornalismo de mercados da revista "Veja". Um amigo comum falou-lhe de Amadeu. «Sua última homenagem à gente portuguesa foi o fantástico livro Norteando, que uniu a sensibilidade do texto de Amadeu com as fotos impressionantes de Luís Borges – um legado que fica em papel. Amadeu nos deixou mal março começara, mas o mirandês, muito por sua indomável vontade, sobrevive-lhe. Há legado maior?» Há?, pergunta Geraldo Samor. «Nada mal para um homem que deixa saudade até em quem não o conhecia de perto.»

Trazer os mercados financeiros para esta história não é acaso. Amadeu Ferreira era vice-presidente da Comissão de Mercados de Valores Mobiliários (CMVM), além de professor de Direito na Universidade Nova de Lisboa, escritor, poeta, tradutor, cronista e o investigador que mais tempo e trabalho dedicou à promoção do mirandês.

 

Çcanse an paç

«Descanse em paz», escreve outro jornalista brasileiro, o diretor da sucursal do Rio de Janeiro de O Estado de São Paulo, Marcelo Beraba, que também só conheceu Amadeu Ferreira pelo livro Norteando. «Tenho mais ou menos a mesma idade de Amadeu, sou carioca, moro no Rio – mas poderia ter nascido em Trás-os-Montes.» O seu avô, «um Martins», nasceu na Sé de Bragança, viveu em Chaves, foi para Inglaterra no início do século XX e «virou representante no Brasil de uma companhia inglesa de louças e aqui teve quatro filhos, a minha mãe um deles.» Folheando o livro de Amadeu Ferreira e Luís Borges, o jornalista viu «a terra rude, rostos e mãos marcados pelo tempo, a fauna surpreendente (sardões, cabras, corços, grifos, poupas)», encontrando vários momentos que o inspiraram.

«Diante da foto de duas mãos anciãs entrelaçadas em torno de um cajado, tirada em Montalegre em 2010, Amadeu assim se expressou», cita Marcelo Beraba: mãos «solitárias talvez, mas ganharam a sabedoria de ter a certeza de que é ali que tudo nasce, incluindo nós, desde há milhões de anos: elas dizem tudo, as minhas palavras apenas a impotência de dizer». Marcelo está encantado com esta passagem de Amadeu Ferreira, que «tocado pelo voo perfeito de uma cegonha cortando os céus de Miranda do Douro, sua terra natal», assim desejou:

«Talvez um dia possa ser como a cegonha: repartir o ano entre duas pátrias e voar entre elas sempre num sereno regresso a casa.»

 

Dar de viver à língua

Ainda na semana passada a escritora Inês Pedrosa falava na revista "Visão" sobre a quantidade de miúdos portugueses que estão a aprender mandarim – não pela riqueza ancestral da língua ou da cultura chinesa mas pela riqueza futura que almejam num emprego ou nos negócios. O mirandês não serve para isso, não serve para ganhar dinheiro. A língua de descendência leonesa, que Afonso Henriques terá falado na corte em Leão, é língua oficial de Portugal desde 1999, numa lei aprovada por unanimidade na Assembleia da República. Mas, se o foi, deve-se essencialmente a uma pessoa, ao deputado mirandês Júlio Meirinhos.

«A aprovação da Lei n.º 7/99 é um marco fundamental para a língua mirandesa», recorda Meirinhos, «já o sábio José Leite de Vasconcelos [que se tornou grande defensor do mirandês no final do século XIX) reclamava esse marco legislativo.» A partir da lei «houve um à vontade quer de falar, de publicar, de assumir as coisas em mirandês. Deixou de ser vergonha», assinala o ex-deputado. Depois, «o ensino conseguiu-se quase normalizar" e «houve publicações permanentes e contínuas», sobretudo por empenho de Amadeu Ferreira. Júlio Meirinho passou a sentir «um orgulho dos mirandeses, das instituições, no apresentar-se e falar mirandês».

Amadeu Ferreira estava mais angustiado quando falou connosco em dezembro. «Um dos principais méritos do reconhecimento do mirandês como língua oficial foi esse: dar-lhe o estatuto que permite que as pessoas não tenham essa vergonha.» Contudo, nem o Governo nem sequer a Câmara de Miranda estão a fazer o suficiente, dizia. «Falta vontade política», o Estado português «não quer saber da importância que esta língua pode ter para o país, para a democracia linguística, para a diversidade». Ora, «é na diversidade que está a beleza das culturas diferentes».

O veículo normal de transmissão de uma língua, concretizava Amadeu Ferreira, «é a família e a comunidade, mas o ensino pode ajudar muito». O ensino do mirandês "devia ser obrigatório nas escolas, não pode ficar abandonado a si próprio. Ensinar-se o mirandês tem de ser valorizado, quem fala tem de ser premiado. E assim em todo o lado, com línguas minoritárias. Eu não vejo problemas em que o mirandês seja ensinado a nível nacional, como o inglês. Qual é o problema? É uma língua nacional".

José Pedro Ferreira, filho de Amadeu, concorda. «Várias línguas ao longo da história estiveram com uso muitíssimo reduzido e hoje têm grande vitalidade. É o caso do finlandês e do hebraico, e ninguém hoje põe em causa estas línguas.» É claro que o facto de «o mirandês continuar a ser falado deve ser uma decisão dos falantes», mas «o Estado deve dar condições para que as pessoas possam optar – e neste momento não há opção». José Pedro Ferreira exemplifica: «Há três pessoas que ensinam mirandês nas escolas da região de Miranda. Não são sequer protegidos, os professores de língua mirandesa todos os anos lidam com a incerteza de serem colocados.»

O que faltou até agora foi «a existência de uma instituição suprapartidária, um instituto, uma fundação que estivesse a gerir e a governar a língua», conta Júlio Meirinhos. «A mágoa do Amadeu foi nem sequer ter havido pela via diplomática, coisa fácil, o reconhecimento internacional da UNESCO.» Há anos que se pede que seja assinada por Portugal a Carta Europeia das Línguas, conta José Pedro Ferreira. «É uma coisa meramente burocrática, que não é feita por puro desinteresse e que permitiria ao mirandês estar integrado no que vai sendo feito por outras línguas minoritárias da Europa.»

Júlio Meirinhos está apesar de tudo otimista. «Julgo que se inverteu o declínio do mirandês, que parecia traçado há 50 anos.» A Associação da Defesa da Língua Mirandesa, que era presidida por Amadeu Ferreira e que após a sua morte mudará a sede de Lisboa para Miranda do Douro, pode fazê-lo, insiste Meirinhos, que logo ironiza: «Basta que a chinesa EDP cumpra os ditames e que afete umas migalhas dos muitos lucros que tem das duas barragens de Miranda do Douro a projetos da promoção da língua.» Meirinhos termina citando o amigo: «Como o Amadeu dizia, quem ao alto não aponta nem no meio acerta.»

 

Esta língua, aquele mundo

Lhuzie, tu só tens sete meses. Na carta que o teu avô te deixou, e que abrirás quando tiveres 18 anos, estarão segredos e belezas que só podemos imaginar. Ele só nos mostrou o poema das andorinhas e disse-nos que o teu nascimento representa um ciclo que ele ficou feliz por completar. E disse, num vídeo de Leonel Brito, o que te diria: «Sê tu mesma dentro deste caminho, livre com intervenção de cidadã, com intervenção positiva, no sentido de que o mundo é transformável. O mundo onde nasceste não está totalmente feito, sobrou um bocadinho para tu fazeres.»

O teu avô, Lhuzie, anunciou-nos ainda que tu falarás mirandês, e nós lembrámo-nos de que há uma parte do mundo que ele só sabia dizer em mirandês. O teu avô precisava do mirandês, desta língua, tua e dele, desta língua nossa, desta língua que precisa de nós. Como as andorinhas que anunciam a primavera que está sempre a começar, «i eilhas nun bolo sien paraige a sticar la tarde».

 

CfDo minderico ao barranquenho: podem os jovens salvar as línguas ameaçadas em Portugal?

Fonte

In revista "E" do semanário Expresso de 14 de março de 2015.

Sobre os Autores

Joana Beleza, jornalista portuguesa, redatora do "Expresso” diário, versão digital.

 

Pedro Santos Guerreiro, jornalista português, diretor executivo do semanário "Expresso".