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Adelfeira
Adelfeira
Um endemismo ibérico

 

Foi com indisfarçável entusiasmo que respondi afirmativamente ao honroso convite da minha amiga Dr.ª Maria Isabel da Veiga Cabral, insigne Presidente da Associação Aldeias Históricas de Portugal, para participar numa iniciativa cultural que decorreu no dia 3 de outubro de 2021, na serra de Monchique. Tal iniciativa integrava-se nas Jornadas Europeias do Património que, no nosso país, se têm comemorado festivamente em várias regiões. Nesse âmbito, presenciámos, no dia anterior, no adro do Panteão Nacional, a espetacular evocação de um Sarau na Corte da Infanta Dona Maria (filha do rei Venturoso, nascido em Alcochete) pelo primoroso grupo “Danças com História”.

A tarefa que me estava destinada era a de ajudar na inventariação de plantas medicinais existentes naquela curiosa serra, cujo cume (Fóia), alcança 902 metros de altitude, sendo o terceiro mais elevado do continente a sul do Tejo [1]. Só por isto, o convite já seria aliciante, mas acresciam outras atrativas particularidades. A Fóia é, em boa parte, constituída por maciços sieníticos algo raros que influenciam, a par da altitude e das proximidades atlântica e mediterrânica, a flora da região. Em boa verdade, este pobre de cristo desconhecia completamente a existência do sienito cinzento, rocha magmática ornamental, semelhante ao granito, muito rica em feldspato, mas praticamente destituída de quartzo.

O dia amanheceu chuvoso, mas isso não impediu o passeio que teve a preciosa ajuda do Presidente da Junta de Freguesia de Monchique, exímio sabedor dos atributos locais. Guiando o seu veículo, conduziu-nos pelos íngremes e pedrosos carreiros da vertente norte da ditosa serra, completando assim o percurso  pedestre.

A paisagem, prenhe de verdes a despeito do estio ainda tão próximo, mostrava-nos socalcos vazios que, em tempos idos, teriam sido cuidadosamente amanhados, uma escola e uma aldeia desertas, sem telhados, apenas com as paredes de sienito erguidas.

Começámos então a anotar as espécies botânicas que íamos encontrando: azevinhos, estevas, fetos, silvas, mentastros de flores rosadas, dedaleiras, eufórbias, urzes, medronheiros, espinheiros-alvar (alguns de porte quase arbóreo), calamintas, tojos-gatunha, amieiros, sobreiros, carvalhos-de-Monchique, castanheiros e, entre muitas outras espécies e subespécies, as afamadas adelfeiras, protagonistas da presente croniqueta.  

Ora, o Rhododendron ponticum subsp. baeticum é um endemismo ibérico que só se encontra espontâneo na serra de Monchique, no Caramulo (Vouzela) e nas serranias de Granada (Espanha). Trata-se de uma estimada relíquia vegetal da floresta Laurissilva com mais de 60 milhões de anos, a qual era predominante na época terciária. Conhecem-se mais rododendros e numerosos híbridos, mormente nas proximidades do Mar Negro, mas a subespécie baeticum só é encontrada nos locais referidos. É por isso uma planta que deve ser estudada cientificamente e cuidadosamente protegida. A sua existência no maciço sienítico da Serra de Monchique contribuiu decisivamente para que o concelho fosse inserido na prestigiada Rede Natura 2000.

Vamos então descrever esta preciosidade botânica que popularmente dá pelo nome de adelfeira, ou adelfa. Em Vouzela (Reserva do Cambarinho) chamam-lhe loendro, o que, em nosso entender, constitui erro crasso suscetível de confusão, visto que o loendro pertence a uma família completamente diferente. A semelhança mais plausível é que ambas as plantas são altamente venenosas.

As adelfeiras formam arbustos perenes bastante ramificados que, no que respeita à subespécie baeticum, raramente excedem os 3 metros de altura. As suas folhas são simples, alternas, coriáceas, brilhantes, oblongo-lanceoladas de cor verde escura. As flores constituem a “joia da coroa”. São fascinantemente vistosas e aparecem na primavera em ramalhetes lilases. Um parêntesis para referir que não as vimos no passeio efetuado porque era outono. Vimos sim, os seus frutos, cápsulas lenhosas estreitas e oblongas, nesta altura ainda imaturas quanto às sementes. Aliás, a reprodução faz-se quase exclusivamente por via vegetativa a competir com silvados e outras plantas invasoras, o que reforça a necessidade da sua preservação.

Toda a planta é venenosa, como foi dito. Especialmente o pólen e o néctar contêm graianotoxinas, pelo que é preciso algum cuidado com o mel produzido pelas abelhas que visitam essas flores tão atraentes.

Mas então, dirão os leitores mais atentos, se o tema destas croniquetas é a fitoterapia, o que fazem aqui as adelfas. Qual a sua utilidade? Bem, consta o manhoso dito popular que o “chá” das folhas é bom para dar às sogras mais recalcitrantes. Adiante! As adelfas constituem, quando floridas, interessantes conjuntos ornamentais. Vê-las e apreciá-las reforça a boa disposição, o otimismo e a coragem de lutar pela vida e contra as pandemias que ciclicamente assolam a Humanidade. Para além disso, são, pela sua antiguidade e raridade, uma importante base de estudo para desvendar a evolução da flora e os mistérios da natureza.

Mas já que falamos de fitoterapia, acrescenta-se uma referência colhida algures e que menciono ao arrepio de quaisquer responsabilidades. Parece que na Turquia, onde vegeta outra subespécie, apontam-lhe algumas virtudes terapêuticas. Concretamente que as folhas e os rebentos são diuréticos e que a seiva apresenta propriedades antifúngicas e anti-inflamatórias e ainda que o mel proveniente do néctar das flores pode provocar alucinações, servindo para nebulosas práticas espirituais. Será?

[1N. E. – A sul do Tejo, o cume mais alto é o da serra de S.Mamede e o segundo, na mesma serra, é o Alto do Forninhos.]

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