DÚVIDAS

A gente vamos?

Parece que há quem pense que a língua é feita de ou sim ou sopas. Esta reflexão me surgiu ao notar a maneira algo dogmática e facilista como Susana Correia responde em 17/02/2003, ao asseverar que «Esta forma, semanticamente equivalente a «nós», em termos sintácticos, porém, não funciona da mesma forma, pois o correcto é dizer a gente vai e não "a gente vamos" ».
As dúvidas da língua também têm uma história. Gostaria de citar neste contexto, pelo seu valor didáctico, um estudioso que, embora escrevendo há muitos anos, talvez não fosse má ideia ser rememorado pelos respondedores do Ciberdúvidas. Refiro-me a Botelho de Amaral, por sinal patrono de um dos parceiros do sítio. Relativamente a muitas das questões aqui recorrentes, já ele disse, e melhor, o que de essencial havia para dizer. Leia-se e medite-se, ao menos a título de recapitulação:
«Epifânio Dias poderá resumir o que pensa a Gramática a respeito da concordância do predicado da expressão colectiva "a gente". Ensina o grande Mestre, na fundamental Sintaxe Histórica Portuguesa, § 17 e):
«Ligar um predicado do plural a uma simples palavra de significação colectiva, que não tem, clara nem subentendida, uma determinação partitiva ou de género é irregularidade que se encontra por exemplo em: Se esta gente que busca outro Hemisfério, /Cuja valia e obras tanto amaste, /Não queres que padeçam vitupério... (Lus. I, 38).
Semelhante prática também em latim era irregularidade: Madv. §215, a,
obs.
Obs. O povo liga frequentemente a "gente" com o valor de nós o predicado no plural da 1.ª pessoa.»
Ora, eu não irei aqui repetir o que escrevi noutros trabalhos, onde chamei a atenção para a manutenção desta constructio ad sensum na língua literária posterior a Camões, como provei citando Herculano e Camilo. Também não acho que valha a pena oferecer agora à consideração dos nossos gramáticos os muitos exemplos literários com que poderia reforçar os que já dei. Escolherei apenas alguns passos que ilustrem o que penso a respeito da concordância do colectivo. Desde já afirmo que estou em desacordo com o que se tem escrito a criticar ou a condenar a pluralização do predicado em jogo sintáctico com um colectivo absoluto. Sou de opinião que as gramáticas não devem continuar a ensinar que o emprego no plural de verbo referido a colectivo no singular representa irregularidade para não imitar.
Se se desse o caso de tal pseudo-irregularidade apenas ocorrer raramente num ou noutro clássico; se se desse o caso de a tendência geral e lógica ser para a singularização, ainda o conselho de não imitar essa concordância clássica se poderia aceitar. Todavia, a verdade é que não se trata de casos de construção raros, ou desaparecidos; a verdade é que a tendência é mais para a concordância pela ideia do que pela palavra; a verdade é que a lógica se não opõe à pseudo-irregularidade; e, ainda, a verdade é que o povo legitima a sintaxe repelida.
Quando o povo diz "a gente vamos", não erra. Não errou Camilo, quando redigiu: "Vê-se uma menina apeada no Marão, emprestando-lhe a gente o seu cavalo e mais ao pai, vamos até Braga com eles, achamo-la bonita..." (O Santo da Montanha, cap. XVI). Não se deve descobrir "irregularidade" em Júlio Dinis, quando escreveu: "muita gente há que nunca na vida sentiu os tais vagos e erráticos sintomas, a que me refiro, e que contudo amam ou amaram deveras." (As Pupilas do Senhor Reitor, cap. VII). Pode imitar-se Camilo nesta redacção: "O povo seguia-o e adiantava-se, para o verem passar, do cabeço dos outeiros." (Ibidem, capítulo XXXIV).
Protestará a lógica? Pedirei aos lógicos a serenidade de repararem nisto:
Não só o latim mas ainda outras línguas tiveram, e têm, construções dessas, consideradas regulares. Ora, não é ilógico o que em qualquer língua concorda com a ideia que se quer expressar. Se na palavra "turba" há a ideia de mais de uma pessoa, a lógica não deve protestar contra o latim - Turba ruunt. Se a palavra inglesa "multitude" encerra a ideia de pluralidade, um inglês não é ilógico ao dizer – The multitude are on our side. Logo, o nosso povo, também não será ilógico ao dizer "a gente vamos", se com a gente significar nós. Portanto, nem Camilo nem Herculano nem Júlio Dinis nem nenhum escritor cairá em irregularidade, ou em ilogismo, se guiar a concordância do colectivo principalmente pela ideia de singularidade ou de pluralidade que lhe dominar a mente.» (Vasco Botelho de Amaral, Glossário de Dificuldades do Idioma Português, Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947.)

Resposta

Antes de mais nada, obrigada pelas sugestões.
No entanto, devo dizer que, se semanticamente a gente funciona como um sujeito plural, sintacticamente, ele é singular e, em Português, o predicado deve concordar em pessoa e número com o sujeito. Se aceitarmos como sintacticamente correcta a forma “a gente vamos ao café”, teremos também de aceitar como possível a forma “a alcateia comeram as ovelhas”, já que em ambos os casos se trata de um colectivo. Mas, mais uma vez, eu ressalvo: o uso da língua nem sempre reflecte as regras da língua.

Cf. «A gente vamos»

 

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