A título de registo do amor dos deputados portugueses à língua de Camões, transcrevo a notícia do jornal "i" de 21/12/2013:
«O parlamento [português] volta a discutir a aplicação do Acordo Ortográfico (AO), o que deverá acontecer já no início de 2014. Esta sexta-feira, os deputados deveriam ter debatido uma petição pela “desvinculação de Portugal” ao acordo, mas um projecto de resolução apresentado por Ribeiro e Castro, Michael Seufert (ambos do CDS) e Mota Amaral (PSD) – onde se admite a “revogação” do AO – remeteu a discussão para mais tarde.
Todos os partidos querem voltar ao assunto. O PSD não refere em que moldes isso acontecerá, mas a deputada Rosa Arezes – que integrou o grupo parlamentar de acompanhamento à aplicação do AO – considera que “é importante” fazer um “ponto de situação” sobre a implementação do acordo. “Temos de fazer um período de reflexão”, e o partido “tomará algumas posições” sobre o tema.
O projecto de resolução apresentado pelos três deputados defende que é preciso “reavaliar a situação e monitorar estreitamente a aplicação efectiva do AO”. Para isso, sugere a criação de um novo grupo de trabalho, desta vez para avaliar os progressos feitos e produzir, em quatro meses, um relatório.
“O governo tem de olhar para isto com olhos de ver”, diz Michael Seufert. Em última análise, e verificando-se que o novo modelo não é aplicado até ao final de 2015 em todos os países subscritores, ficará aberta a porta à “revogação, suspensão ou revisão” do acordo, defende-se no projecto.
O PS apresentará também um projecto de resolução, garante Gabriela Canavilhas, que prefere não revelar ainda mais pormenores sobre o conteúdo do diploma. “O AO é um tratado internacional e tem de ser tratado com cuidado, trata-se de uma matéria diplomática”, limita-se a referir a deputada e ex-ministra da Cultura. .
Já Miguel Tiago, do PCP, defende que “as dúvidas e críticas sobre o acordo aprofundaram-se” desde a votação no parlamento. O deputado lembra “os custos” que implicaria para o país a revogação do AO, mas vai dizendo que essa solução “nunca pode ser colocada fora da mesa”. “Como está é que não pode ficar”, defende o deputado comunista.
O acordo foi aprovado na Assembleia da República em 2008 com a abstenção do PCP e os votos contra dos deputados Manuel Alegre (PS), Nuno Melo e António Carlos Monteiro (CDS). O agora vice-primeiro-ministro e na altura deputado Paulo Portas optou pela abstenção.
0 então ministro da Cultura, José [António] Pinto Ribeiro, defendeu o acordo com a necessidade de “regular a forma de escrever de uma mesma língua usada por mais de 220 milhões de pessoas”.
No mesmo debate, o PSD, pela voz de Pedro Santana Lopes, defendeu o acordo com o argumento de que “não podemos ser fixistas nem rigidistas”. Cinco anos depois, a Assembleia da República volta a discutir o polémico acordo.»
Já que os representantes da Nação se vão debruçar sobre a matéria do Acordo Ortográfico (AO), vale a pena recordar alguns pontos que podem servir de apoio à reflexão a que certamente irão proceder antes de votar qualquer das moções apresentadas.
a) O Acordo Ortográfico (AO) resultou de um longo processo desencadeado em Portugal e no Brasil nos anos 60 do século passado e implicou décadas de discussão, a nível técnico e sobretudo a nível político. Os objetivos do AO encontram-se plenamente atingidos: temos agora para a língua portuguesa, num único instrumento legal, regras unificadas de escrita – o que é essencial para a afirmação do português no mundo, nomeadamente enquanto língua de trabalho das organizações internacionais. Não se extinguem, porém, as variantes escritas representativas de formas diferentes que as palavras têm entre países ou em diferentes regiões de cada país. Há quem escreva ouro e quem escreva oiro, tesoura ou tesoira e há quem designe «evento» por facto ou por fato: tal não releva de regras de escrita diferentes, mas antes da variação da fala, com que o AO não interfere. O Acordo é isso mesmo, apenas ortográfico, e não interfere na sintaxe, no vocabulário e ainda menos nos estilos da fala e da escrita.
b) Em março de 2008, o AO foi aprovado pelo Governo português e promulgado pelo Presidente da República, sendo estipulada uma moratória de seis anos para a sua integral aplicação. Este período de transição termina em 13 de maio de 2015, passando então o Acordo Ortográfico a vigorar em Portugal na sua plenitude. Até lá, coexistem as duas ortografias, a antiga e a nova. No Brasil, esse período de transição, que diz respeito à aplicação e não à vigência, foi recentemente para terminar a 31 de dezembro de 2015, de modo a que, nos dois Estados, o termo dos respetivos períodos de transição sejam próximos. «A iniciativa servirá para harmonizar o processo da reforma com Portugal, que escolheu 2015 para finalização da entrada em vigor», afirmou a senadora Ana Amélia Lemos, que propôs o projeto de prorrogação da data-limite de transição. Foi isso e só isso que aconteceu no Brasil. O embaixador do Brasil em Portugal já esclareceu o que pode ser verificado por quem ler edições brasileiras (até na web), nomeadamente as do Governo e do Congresso (que inclui o Senado): a nova ortografia é aplicada e não se encontra suspensa, como uma demagogia de blogues e comentadores criativos pretende fazer crer.
c) O art.° 18.° da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados impõe aos Estados «a obrigação de não frustrar o objeto e a finalidade de um tratado antes da sua entrada em vigor». O art.° 26.° do mesmo diploma acolhe o principio pacta sunt servanda: «Todo o tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé.» O Estado português não pode suspender, revogar ou protelar sine die a aplicação de um tratado que o obriga, sob pena de violação dos princípios básicos do direito e da convivência internacionais. Acresce que a nova ortografia é aplicada em Portugal, de modo cada vez mais generalizado, por orgãos do Estado e particulares, escolas, manuais escolares, editores, jornais, cadeias de televisão. Foi de boa fé que esses organismos e entidades aplicaram, num esforço económico de grande alcance, uma lei do Estado.
d) O Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) é previsto pelo artigo 2.° do AO, na sua versão inicial e na redação que lhe foi dada pelo Primeiro Protocolo Modificativo, de 17 de julho de 1998: «Artigo 2.º Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.» O VOC é o instrumento que permite clarificar muitas das disposições do AO e, por isso, as autoridades dos países-membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa fazem o necessário para que o VOC esteja disponível antes do termo dos períodos de transição previstos em cada Estado. Do mesmo modo, sempre que a ortografia do português foi alterada anteriormente (1911, 1931, 1943, 1945, 1971-73, 1990) os vocabulários ortográficos oficiais aclararam questões tecnicamente imprecisas nos instrumentos legais que introduziram a reforma. «O governo tem de olhar para isto com olhos de ver», diz, segundo a notícia supra, o sr. Deputado (CDS) Michael Seufert. Talvez seja no VOC e nos meios para o finalizar que o sr. deputado pretende que o Governo coloque «os olhos de ver». Se assim é, o apelo não pode ser mais oportuno.
É de desejar que os deputados portugueses não se deixem influenciar por quem grita. Há que distinguir entre entrada em vigor, aplicação e período transitório de qualquer instrumento jurídico. E no AO há que ter em conta o trabalho em curso, e futuro, dos vocabulários nacionais e do VOC. Em Portugal e no Brasil, o AO está em vigor, é aplicado pelas administrações públicas e pela maioria de editores e meios de comunicação e será obrigatório no termo dos períodos de transição. Criticar o AO é certamente legítimo. A título privado e particular, ninguém irá preso se, após o termo do período de transição, não o aplicar. Os puristas poderão continuar a escrever as consoantes mudas e até regressar à ortografia afonsina, certamente mais pura do que aquela que o AO substitui. Falsear as situações existentes é, porém, inadmissível, sobretudo quando, como acontece nas ações de muitos dos opositores, se fazem circular pela opinião pública versões absurdas das disposições do AO, como se, p. e., a ortografia de facto ou de pacto fossem modificadas, obrigando-se os portugueses a escrever e dizer fato para designar «evento», e portugueses e brasileiros a escrever e dizer pato para designar um acordo.
O tema do AO é demasiado sério para ser tratado em termos sentimentais. O que, acima de tudo, está em causa, é uma questão estratégica: a afirmação internacional do português, o que dificilmente se faria com várias ortografias oficiais. Ora, a questão estratégica é política. Foi por isso que todos os Estados-membros da CPLP assinaram o Acordo Ortográfico; apenas dois não o ratificaram ainda, afirmando reiteradamente, porém, a sua intenção de o fazer logo que disponham de meios técnicos para tal. E foi por isso que a Assembleia da República aprovou o AO e os seus protocolos modificativos, o que permitiu as respetivas ratificações pela República Portuguesa. Esperemos que a AR confirme as suas anteriores votações e passe a acompanhar, com o amor que sabe dispensar à língua de Camões, a elaboração do Vocabulário Ortográfio Comum da Língua Portuguesa.
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