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Pelourinho // Estrangeirismos

A inevitabilidade da palavra reporte

«Não sabia que entre os subordinados havia dois amantes dos pombos, dois columbófilos, palavra talvez ainda não existente na época, salvo porventura entre iniciados, mas que já devia andar a bater às portas, com aquele ar falsamente distraído que têm as palavras novas, a pedir que as deixem entrar.»
 
José Saramago, A Viagem do Elefante, p. 114.

 

O trecho de José Saramago em epígrafe ilustra literariamente o modo como a língua muitas vezes faz as suas aquisições e se enriquece, além de constituir também uma pessoal e singelíssima homenagem póstuma ao único Nobel da literatura portuguesa. A língua em acto anda, aliás, como se sabe e não podia deixar de ser, sempre à frente dos dicionários. A prová-lo está uma nova acepção da palavra reporte que se vê cada vez com mais frequência em uso em jornais, revistas e livros. Em Agosto, esbarrei com ela duas vezes, num curto lapso de tempo, uma no Expresso (Caderno Economia, 7-08-2010, p. 14), em que, numa entrevista, com texto de Abílio Ferreira, o presidente das Estradas de Portugal, Almerindo Marques, respondendo à pergunta: «Como explica que o relatório tenha sido tornado público?», refere: «Um caso deveras lamentável. Faço reportes trimestrais à tutela. Só este é que veio a público.» Três dias depois, no Diário de Notícias (10-08-2010, n.º 51 624, p. 9), num texto assinado com as iniciais EC, reproduzindo um documento do PSD, transcreve-se: «O PSD alargou as competências “para a realização de reportes com periodicidade trimestral […]”.»

A palavra reporte, com a acepção de documento escrito efectuando um balanço ou ponto de situação sobre determinado assunto, está por aí, creio que para ficar, e não parece estar dicionarizada. Dos dicionários que consultámos, por exemplo, o Michaelis – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (Michaelis) apresenta duas acepções:

1. Operação da Bolsa, pela qual o comprador de títulos a termo vende-os à vista ao especulador, de quem, em seguida, os adquire a prazo, por preço mais elevado.
2. Diferença entre a cotação à vista e a cotação a termo de certos valores, na Bolsa, quando a segunda é superior à primeira.

 

O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o iDicionário Aulete (ambos nas versões online) e o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, apresentam igualmente estas duas acepções. Por sua vez, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (Academia), apresenta uma acepção equivalente à primeira do Michaelis. Ao passo que a versão online do Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, o Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da Texto Editores, o Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva, e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa nem sequer incluem a palavra.

Ou seja, a palavra ou não aparece ou aparece apenas com a(s) acepção(ões) transcrita(s) ligada(s) à área financeira. Nunca por nunca, portanto, com o sentido que Almerindo Marques e o PSD lhe dão, e Expresso e DN chancelam. Etimologicamente, apresenta-se como proveniente do francês report.

Além do substantivo reporte, há ainda o verbo reportar na acepção específica ligada a este substantivo, «fazer a operação bancária de reporte» (Michaelis). E, já não com a mesma raiz, mas idêntica sonoridade, o verbo reportar, no sentido de «voltar ou fazer voltar, alguém ou alguma coisa, para trás, no tempo» (Academia) e «dar a notícia de algum acontecimento ou assunto num meio de comunicação social, após pesquisa sobre o mesmo; fazer a reportagem de» (Academia), que aponta como sinónimos os verbos noticiar e relatar.

Ora, chegando o verbo reportar, nesta última acepção, por via do inglês to report, no qual o substantivo report, no sentido de documento ou relatório que traça um ponto da situação acerca de uma determinada questão, tem filiação; sendo a língua inglesa, hoje, uma língua franca e de grande contaminação; e ainda por cima existindo já em português, embora com outro sentido, o substantivo reporte — estando nós por isso já predispostos à sonoridade do mesmo — era inevitável que esta acepção de reporte entrasse no léxico português, certamente cunhada por pessoas com domínio ou pelo menos intensivo contacto com a literatura técnica anglo-saxónica. Além do mais, a palavra está bem construída, e o seu aportuguesamento exige apenas uma simples adição de um e final.

Resta-nos, pois, esperar que esta nova acepção de reporte seja dicionarizada, como seguramente irá acontecer. É que ela anda por aí com ar distraído, a bater às portas e a pedir que a deixem entrar…

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