Em Portugal, como noutros países, os nomes de lugar – ou topónimos – apresentam formas e associações vocabulares inesperadas, muitas vezes à mercê de observações jocosas. Ao escritor português Miguel Esteves Cardoso também não escapou a hilariedade que, de forma mais ou menos direta, alguns casos da toponímia portuguesa podem suscitar. Sobre este tema, transcrevem-se algumas passagens do texto intitulado "Nomes da nossa terra" , o qual faz parte de uma das obras humorísticas do autor, Os Meus Problemas, publicada em 1988 (manteve-se a ortografia original).
[...] Um dos mais notáveis documentos da nossa cultura é o [Novo] Dicionário Corográfico de Portugal, de A. C. Amaral Frazão. Contém cerca de mil nomes de lugares, aldeias, vilas e cidades portuguesas. Ao ler os nomes de alguns sítios, (...) compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira[1] não é nada comparado com certos nomes portugueses. Imagine-se o impacto de dizer «Eu sou da Margalha»[2] (Gavião) no meio de um jantar. Veja-se a cena num chá-dançante em que um rapaz pergunta delicadamente «E a menina, de onde é?», e a menina diz: «Eu sou da Fonte da Rata»[3] (Espinho). [...]
É evidente que, na nossa cultura, existe o trauma de «terra». Ninguém é do Porto ou de Lisboa. Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer rir. […]
Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como originário de Filha Boa (Torres Vedras). Verá que não é bem atendido. […]
Não há limites. Há um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima. […]
Há terras com nomes que parecem títulos de livros de Eugénio de Andrade, como Ferido de Água (concelho de Paredes). Há saldos de todas as espécies. Toda a gente conhece o Vale das Pegas (Albufeira) e a Venda das Raparigas (Alcobaça), mas há lugares mais especializados como a Venda da Luísa (Condeixa-a-Nova) e ainda lugares lamentavelmente racistas, como seja a infame Venda dos Pretos, em Leiria.
Com nomes destes, nunca iremos a lado nenhum. […]
Começo assim para não começar a falar logo em Picha[4] […] vergonha eterna da freguesia e concelho de Pedrógão Grande.
[…] Picha tem as casas mais baratas do país, só porque os potenciais residentes são incapazes de enfrentar uma morada tão rasca. Não é um nome que torne distinto um cartão de visita. […]
Se fosse um caso isolado, passaria, mas infelizmente não é. […] De facto, para além de Picha, Portugal conta igualmente com dois lugarejos denominados Venda da Gaita. Uma fica em Almoster[5] e outra em Tomar, e isto não pode continuar assim.
Recomecemos a nossa viagem pela nossa terra. Que dizer de um país onde é possível ir de Cabeça Perdida (em Portimão) para a Cornalheira[6] (em Meda)?
Devia haver uma Comissão para a Decência Onomástica, que tratasse nomes como Casal do Corta-Rabos (Alcobaça), Mal Lavado[7] (Odemira), Casal da Porcaria[8] (Leiria) e Ripanço[9] (Proença-a-Nova) como problemas. Porque são problemas. […] Qual o construtor civil que se sente tentado a empreender a construção de novos fogos em lugares chamados São Paio da Farinha Podre[10] (Penacova), Casal do Esborrachado (Almeirim), Triste Feia (Leiria), Parola (Mafra) ou Farta-Vacas (Lagos)? […]
[…] No capítulo da ciência, há nomes que fazem sorrir. Mesmo assim, para quem mora neles, devem ser muito maçadores. Há em Chaves um Raio-X e, como se não bastasse, um Entroncamento do Raio-X. Em Alcobaça, em contrapartida, há uma (mais portuguesa) Engenhoca. Continua com Telégrafo (em Tomar) e Arquitecto (em Mafra). Em Grândola, há uma Aldeia do Futuro. Em que outro país europeu é possível sair um dia de automóvel e fazer o trajecto Raio-X, Engenhoca, Telégrafo, Arquitecto, Aldeia do Futuro??!!
Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda [Odemira] à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde), e acabando a comprar rebuçados em Bombom do Bogadouro[12] (Amarante), depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã). […]
E basta!
[1] N. E. – A Damaia e a Reboleira são duas localidade do concelho da Amadora, nos arredores de Lisboa.
[2] N. E. – Cf. margalho (calão) = pénis (A. M. Pires Cabral, Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Âncora Editora, 2013).
[3] N. E. – Na fonte consultada pelo autor, o lugar assim chamado situa-se na freguesia de Silvalde, em Espinho; contudo, atualmente, não é possível identificá-lo em recursos cartográficos eletrónicos ou páginas disponíveis na Internet. No entanto, trata-se de um topónimo que não é assim tão raro em Portugal, e existe, por exemplo na freguesia de Santa Maria de Sardoura, no concelho de Castelo de Paiva, no distrito de Aveiro.
[4] N. E. – Picha é um topónimo homófono de pixa, «pénis». Não é certo que haja relação etimológica entre as duas palavras.
[5] N. E. – No dicionário consultado pelo autor, registam-se efetivamente duas localidades chamadas Venda da Gaita, mas essa fonte situa ambos os lugares no concelho de Tomar, um na freguesia de Paialvo e outro na freguesia de S. João Batista.
[6] N. E. – O topónimo Cornalheira não se relaciona com corno, "chifre", mas, sim, com corno, termo que se aplica às «plantas do gên. Cornus, da fam. das cornáceas, que reúne 65 spp., nativas de regiões temperadas do hemisfério norte, algumas da América do Sul e da África, várias cultivadas como ornamentais, por seus frutos comestíveis ou pela madeira» (Dicionário Houaiss). Cornalheira é especificamente o mesmo que terebinto, «arbusto ou árvore pequena (Pistacia terebinthus), da fam. das anacardiáceas, nativa do Mediterrâneo, de folhas decíduas com folíolos mucronados, flores pequenas e apétalas, em panículas, frutos drupáceos diminutos, e cujo caule, por incisão, exsuda resina transparente e aromática, conhecida como terebintina ou terebintina-de-quio» (idem, cornalheira e terebinto).
[7] N. E. – Topónimo também registado como Malavado (cf. página descritiva da freguesia de S. Teotónio no sítio da Câmara Municipal de Odemira). Não dispomos de fontes que esclareçam a origem deste topónimo.
[8] N. E. – Não conseguimos identificar esta localidade noutras fontes.
[9] N. E. – Topónimo homónimo do substantivo comum ripanço, geralmente interpretado em Portugal como sinónimo de descanso (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa).
[10] N. E. – A localidade de São Paio de Farinha Podre mudou de nome em 1960 ou 1985, sendo atualmente é conhecida como São Paio do Mondego.
[11] N. E. – Lugar também conhecido como Ferida d'Água e Frido d'Água (cf. Américo Costa, Diccionário Chorographico de Portugal Continental e Insular, 1929-1949).
[12] N. E. – Não conseguimos identificar esta localidade noutras fontes.
in Os Meus Problemas (1988), de Miguel Esteves Cardoso.