«O nosso hábito de escrever as letras uma a seguir à outra não é universal: há quem as enrole em pequenos rectângulos…»
Depois de, há uns dias, ter ido dar uma volta à Galiza, proponho uma viagem bem maior. Aproveito um excerto do livro Palavras que o Português Deu ao Mundo — Viagens por Sete Mares e 80 Línguas e proponho uma viagem à Ásia a bordo do nome do nosso país.
Comecemos pelo Vietname. Por aquelas paragens, o sistema de escrita é o nosso conhecido alfabeto latino e o nome do nosso país é este:
Não parece, mas estas três sílabas são uma tentativa de dizer de imitar a maneira como dizemos o nome. Disse sílabas? Sim: por influência do antigo sistema de escrita, baseado nos caracteres chineses, o vietnamita separa as sílabas com espaços.
Por que razão o vietnamita, ao contrário de muitas outras línguas asiáticas, usa o alfabeto latino? A culpa é de uns quantos missionários portugueses, que arranjaram maneira de escrever aquela língua distante usando o nosso alfabeto. O problema é que as nossas letras não se adaptam facilmente a uma língua tonal como o vietnamita, e os pobres missionários tiveram de se socorrer de muitos acentos e outros penduricalhos linguísticos. Resultado? O sistema de escrita vietnamita, que tem lá as nossas letras, mas todas rabiscadas. O nome do nosso país, por lá, já mostra parte dessa caterva de sinais: não é só o traço no «D», o acento grave no «a», mas também um «o» com dois acentos!
Se o vietnamita acabou por usar as letras latinas, a língua mais falada por aquelas bandas – na verdade, a língua mais falada no mundo – não usa o nosso alfabeto. Para um leitor português, o nome de Portugal em chinês é um pouco, digamos, opaco:
Sim, eu sei, o leitor não consegue ler isto. Eu também não. A transcrição no alfabeto latino é «pútáoyá» (cuidado com as primeiras duas sílabas).
Este nome é uma tentativa de adaptar o nome original à fonética chinesa. Para representar esses sons, os chineses usam os caracteres que significam «uvas» (葡萄) e «dente» (牙). Somos o país das laranjas para um romeno – já para um chinês, o nosso nome tem um sabor inconfundível a uva…
Note-se que o sistema de escrita chinês começa por nada ter que ver com o som. Muitos dos caracteres são descendentes de antigas representações de objectos – embora hoje seja difícil ver essa representação em muitos deles. No entanto, o som tem a sua importância. Se uma palavra de significado muito diferente é dita da mesma maneira que uma outra palavra, o carácter da primeira pode acabar por ser usado para a segunda. Assim, o som da palavra para «uva» é parecido com uma das sílabas do nome de «Portugal»? Use-se o carácter para «uva»… Além disso, muitos caracteres têm duas partes, uma que indica o significado e outra que indica como se deve ler aquele carácter.
É um sistema complexo, tornado ainda mais complexo pela tentativa de simplificação dos caracteres imposta pelo governo da República Popular da China, que levou à criação de duas formas de escrita diferentes: a tradicional – usada em Taiwan, Hong Kong e Macau – e a simplificada – usada na República Popular da China.
Como acontece muitas vezes, as tentativas de simplificar só complicam.
E no Japão, ali ao lado? Tem um sistema de escrita ainda mais complicado que o chinês… Os japoneses usam três conjuntos de caracteres diferentes: alguns milhares de caracteres importados da China e dois silabários, ou seja, caracteres que representam a totalidade do som de uma sílaba e não cada som em particular.
Vejamos como escrevem «República Portuguesa»:
A primeira parte do nome está escrito usando o sistema katakana:
Como se lê? Assim: /porutogaru/.
Cinco sílabas, cinco caracteres. O primeiro é o símbolo para «po». Os símbolos para «pa», «pi», «pu», «pe» e «po» são estes (a ordem tradicional das vogais é diferente em japonês): Este silabário existe em paralelo ao hiragana – que é, aliás, o principal. Nesse outro silabário, as mesmas sílabas escrevem-se assim:
O nome de Portugal podia ser escrito usando este outro silabário. No entanto, tal não é comum. O uso do katakana é semelhante ao uso do itálico: serve para palavras importadas, etc. Neste caso, é como se o nome de Portugal estivesse sempre escrito em itálico.
Já a segunda parte – «república» – usa caracteres chineses:
O termo 共和国 lê-se, em japonês, /kyōwakoku/, e poderia ser perfeitamente escrito usando os silabários, o que teria a vantagem de permitir ler a palavra mesmo se não a conhecêssemos – e, por outro lado, seria possível escrevê-la a partir do som, sem decorar milhares de caracteres. Já no caso dos caracteres chineses, sem conhecer a palavra, é difícil saber como se lê a partir da escrita ou como se escreve a partir do som. Os japoneses podiam perfeitamente escrever tudo usando apenas os seus silabários – aliás, bastaria um deles –, mas não é isso que acontece: fazem questão de continuar a usar três conjuntos de caracteres na sua escrita.
Como vimos, os silabários chamam-se hiragana e katakana. Os caracteres chineses são chamados, no Japão, de «kanji». Estes «kanji» têm origem chinesa, mas as palavras que os japoneses dizem, se ignorarmos as importações que existem entre quaisquer línguas fisicamente próximas, não se relacionam com as palavras com que os chineses lêem os mesmos caracteres – o chinês e o japonês são línguas muito distantes. Note-se: «república», em chinês, escreve-se assim:
Vemos os mesmos símbolos que em japonês, é certo. No entanto, a leitura é completamente diferente: /gònghéguó/.
Ah, mas se formos até Taiwan, a forma da palavra muda – mas a leitura é a mesma:
Portanto: os japoneses, nalguns casos, usam um silabário – os símbolos representam sílabas. Noutros casos, fazem como os chineses: usam caracteres que representam o significado dessas palavras – embora, por vezes (pelo menos em chinês), os mesmos caracteres sejam usados para representar outras palavras que são lidas da mesma maneira. É confuso? Um pouco.
Já nós usamos um alfabeto. Um alfabeto é um conjunto de símbolos que representam fonemas, ou seja, a ideia abstracta de um som – som esse que, na prática, é realizado de maneiras diferentes dependendo da palavra em que estamos, do som que vem a seguir, entre outros factores. Para percebermos o que significa fonema, olhemos para a letra «s»: este símbolo representa o mesmo fonema tanto em «três anos» com em «três carros», mas uma grande parte dos falantes lê-o de maneira diferente nos dois casos. Isto, claro, é o princípio geral. Também nós temos excepções e complicações – não estamos isentos de algumas interessantes confusões…
Pois sigamos agora até à Coreia, ali mesmo entre o Japão e a China… Será o sistema de escrita como o chinês – logográfico – ou como um dos silabários japoneses? Na verdade, não. O sistema coreano é um alfabeto, pois representa os fonemas – ou seja, há um símbolo para cada consoante e para cada vogal.
Mas há uma surpresa! As consoantes e as vogais não são representadas de forma linear, mas antes encavalitadas em cima umas das outras.
Se olharmos para o nome de Portugal, vemos isso mesmo:
Isto é um alfabeto e dos mais sistemáticos que existem. O primeiro símbolo (포) representa a sílaba /po/, mas não estamos perante um silabário. Na verdade, o símbolo pode ser dividido entre o som /p/ e o som /o/:
No segundo símbolo, temos a consoante para o som /l/ e para /eu/: 르.
Na terceira sílaba, temos os símbolos para /t/ e /u/: 투.
E, por fim, temos uma sílaba com os sons /g/, /a/ e /l/: 갈.
Repare o leitor como o /l/ – que, em coreano, parece um dois – aparece duas vezes.
O nome do nosso país, em coreano, é /poleutugal/, ou seja, 포르투갈.
Em conclusão: o nosso hábito de escrever as letras uma a seguir à outra não é universal: há quem as enrole em pequenos rectângulos…
Texto publicado do blogue Certas Palavras no dia 16 de abril de 2020. Segue a norma ortográfica de 1945.