«A evolução do conhecimento e das instituições de ensino superior e de ciência permite identificar dinâmicas de antecipação, inovação e adaptação ao futuro, que importa estimular.»
Importa refletir sobre o que já sabemos e retirar algumas lições para enfrentar o futuro próximo e encontrar os caminhos da recuperação.
A crise provocada pela pandemia da covid-19 gerou no mundo um quadro generalizado de grande incerteza em relação ao futuro, sobretudo o futuro próximo. Revelou problemas graves sem visibilidade pública, revelou fragilidades, mas também revelou as forças que permitiram responder melhor na proteção da saúde pública e na preservação do tecido económico e social. Importa refletir sobre o que já sabemos e retirar algumas lições para enfrentar o futuro próximo e encontrar os caminhos da recuperação.
I. O que a crise revelou
1. As desigualdades territoriais e socioeconómicas das famílias estendem-se ao acesso aos serviços de comunicações e aos meios tecnológicos e informacionais, agravando as desigualdades escolares de crianças e jovens.
2. O défice de investimento em TIC nas escolas manifesta-se na escassez de computadores e ligações à rede, tanto para alunos como para professores, e na escassez de conteúdos pedagógicos e didáticos em formato digital, sobretudo nas escolas públicas.
3. À falta de professores em diferentes grupos de docência, veio revelar-se o problema” invisível” das competências e capacidades no domínio específico das tecnologias digitais aplicadas ao ensino.
4. O atraso no processo de transição digital na generalidade das empresas e organismos da administração pública tornou-se evidente em domínios como os da desmaterialização dos processos e organização do teletrabalho.
5. A excessiva dependência da economia portuguesa do setor do turismo e de mercados excessivamente concentrados revelou uma grave vulnerabilidade externa.
6. Acentuaram-se as desigualdades tradicionais entre o trabalho manual/presencial (indústria, restauração, turismo, hospitais e serviços de saúde, lares e ação social, agricultura, pesca, etc.) e o trabalho intelectual ou nos serviços, expressas nos níveis de exposição ao risco, na proteção na saúde, nos rendimentos e no desemprego.
7. A solidez do Sistema Nacional de Saúde (SNS) em capacidades, recursos, organização e mobilização, incluindo a monitorização, tratamento de informação e acompanhamento da saúde pública, apesar de os sistemas de saúde não estarem, por definição, em nenhum país do mundo, dimensionados para enfrentar crises de saúde pública.
8. A qualidade e a quantidade de quadros e dirigentes presentes nas empresas como nos organismos da administração pública central e local.
9. A capacidade do sistema científico internacionalizado para produzir e difundir conhecimento científico e tecnológico. Todas as áreas de conhecimento foram convocadas para encontrar respostas, tendo sido decisivo o trabalho colaborativo e pluridisciplinar, em redes nacionais e internacionais.
10. A disponibilidade de infraestruturas de comunicações digitais em (quase) todo o território nacional permitiu processar um maior fluxo de dados, destacando-se a capacidade das instituições de ensino superior para o ensino à distância e para o trabalho em rede.
11. Uma capacidade inesperada de adoção de políticas públicas baseadas em conhecimento, informação e negociação coordenada ao nível das diferentes instituições, sectores e organismos.
II. Recuperação e o papel das universidades
A natureza da crise atual – pandemia, com suspensão de grande parte das atividades económicas e sociais –, não tendo precedentes na história moderna e contemporânea, é em si mesma um desafio. Sendo o tema deste texto as competências para o futuro, importa lembrar que o futuro é construído quotidianamente, não existe como entidade autónoma do presente. Ele será o resultado de múltiplas ações e decisões tomadas hoje, a partir do que queremos, mas também do que já sabemos e conhecemos. O funcionamento democrático das instituições, a melhoria das condições de vida e a diminuição das desigualdades sociais e económicas continuam a ser objetivos centrais das ações e decisões a tomar.
Será, por isso, importante agir para percorrer os seguintes caminhos:
1. Reforço e capacitação do SNS: a formação dos profissionais de saúde e a organização do trabalho em equipas integradas deve estar presente na agenda da política de ensino superior.
2. Continuidade dos programas de investimento no sistema científico, com estímulos ao trabalho colaborativo, pluridisciplinar e em rede, bem como de reforço do emprego científico. A qualidade dos recursos humanos em ciência é decisiva para enfrentar qualquer crise.
3. Reforço da prioridade à formação de diplomados nos níveis de 1.º e 2.º ciclo. No que respeita aos jovens, para prevenir o agravamento da desigualdade no acesso ao ensino superior, deve ser monitorizada a evolução da procura ou a reconfiguração das oportunidades do mercado de trabalho, bem como flexibilizadas as condições de acesso à Ação Social. No que respeita aos maiores de 23, num quadro de maior exigência no que respeita à aprendizagem ao longo da vida, os apoios financeiros às famílias e às situações de desemprego poderão ser orientados para a promoção das qualificações e associados à formação conferente de grau de 1.º e de 2.º ciclo.
4. Apoio a programas de desenvolvimento de plataformas de ensino à distância e de produção de conteúdos de ensino em formato digital, com prioridade para o espaço da língua portuguesa. Com as restrições à mobilidade internacional, a aposta em cursos conferentes de grau, na modalidade blended learning e à distância, alargará a base de acesso ao ensino superior e valorizará o português como língua de conhecimento, respondendo à procura e às expectativas de estudantes dos PALOP e do Brasil.
5. A formação de quadros, com diferentes níveis de profundidade, em Ciência de Dados e em tecnologias digitais aplicadas ganhou uma nova urgência. O desafio será ultrapassar o paradigma de uma formação excessivamente centrada na engenharia.
6. Incentivos a programas para a transformação digital na administração pública, bem como nas pequenas e médias empresas. Novas formas de teletrabalho complementares ao regime presencial exigem a capacitação de quadros e a ligação das instituições de ensino superior às empresas e à administração pública. A formação de quadros e dirigentes da administração central e local deve ser repensada, com atualização da missão do INA e o aprofundamento da sua ligação ao sistema de ensino superior, numa lógica desconcentrada e incluindo a formação à distância.
7. As universidades podem ter um papel importante no apoio aos municípios na gestão de riscos naturais e de saúde pública, incluindo estratégias de reforço da sustentabilidade da produção local.
8. O lançamento de um programa para o apetrechamento tecnológico das escolas e das famílias (equipamento, ligações e conteúdos) revela-se agora urgente, bem como a formação inicial e contínua de professores. Neste ponto, seria importante a criação de um grupo de trabalho interministerial para estimular e apoiar o ensino superior a desenvolver programas de formação de professores, em novos moldes, incluindo a capacitação no uso das tecnologias digitais, no uso das plataformas, dos conteúdos e das didáticas específicas do ensino à distância, bem como na inovação pedagógica para enfrentar o desafio da diversidade escolar. Estes programas deveriam incluir ainda modalidades de estágios remunerados, em exercício.
Duas notas finais
1. Dada a rapidez dos processos de mudança, a capacidade de continuar a aprender ao longo da vida é uma competência decisiva para enfrentar o futuro. A capacidade para continuar a aprender está estreitamente dependente de formações iniciais generalistas, de banda larga, e não especializadas. As universidades enfrentam o desafio de responder com equilíbrio às necessidades de competências generalistas vs. competências especializadas.
2. A evolução do conhecimento e das instituições de ensino superior e de ciência permite identificar dinâmicas de antecipação, inovação e adaptação ao futuro, que importa estimular. Na base de tais dinâmicas está a autonomia e a liberdade de investigar e ensinar, num equilíbrio virtuoso de abertura à sociedade e de incorporação da agenda dos problemas sociais, económicos, tecnológicos, de saúde pública, na agenda científica. É preciso renovar as ligações às instituições empregadoras, sem desistir de continuar o árduo trabalho da produção do conhecimento como finalidade em si próprio.