«O modelo patriarcal e machista de sociedade modela os idiomas? Não é a única causa, mas tem relevância.»
A utilização da expressão “camaradas e camarados” durante a recente Convenção do Bloco de Esquerda mexeu no vespeiro do politicamente correto. A prova disso foi a inesperada atenção nacional que a frase mereceu.
Um dos exemplos foi a virulenta verve de Nuno Melo. O eurodeputado do CDS escreveu na sua crónica no Jornal de Notícias que o emprego dessa expressão mostrava como estávamos “dispostos a assassinar a língua portuguesa, para sublinhar proclamações de género ridículas”.
Ter realçado essa parte específica da minha intervenção evidencia o que tira o CDS do sério. Eu tinha começado essa alocução por realçar que CDS e PSD decidiram apoiar o conservador alemão Manfred Weber como candidato à presidência da Comissão Europeia – a mesma pessoa que queria forçar a aplicação de sanções a Portugal no rescaldo das eleições legislativas de 2015, que tiraram a direita do governo. Tinha, ainda, acusado Nuno Melo de alta traição por se aliar a esses carrascos do povo português. Sobre isso, nada. O que o tirou do sério foi eu ser um aparente kamikaze da gramática. Diz muitíssimo sobre Nuno Melo e as suas prioridades políticas.
Um outro exemplo é de um militante contra a linguagem inclusiva, o humorista Ricardo Araújo Pereira (RAP), que decidiu abrir um novo capítulo neste dossier, desta feita no radiofónico Governo Sombra. O epíteto “ridículo” foi repetido pela enésima vez. A argumentação está longe da imaginação que caracteriza o humorista, mas mantém a coerência neste seu ideário.
Que a linguagem é política, ninguém duvida. RAP, como fervoroso adepto de futebol, saberá que o Estado Novo trocou o “vermelho” pelo “encarnado” para retirar quaisquer conotações de esquerda ao apoio ao Sport Lisboa e Benfica. Se assim foi no futebol, é absurdo achar que essa regra prevê uma exceção nas relações sociais.
O modelo patriarcal e machista de sociedade modela os idiomas? Não é a única causa, mas tem relevância. Tomemos França como exemplo. As fundações do absolutismo francês passaram pela estruturação e a normalização da língua francesa. Curiosamente, basta ler o que pensava um dos grandes arautos desse processo e perceber as suas intenções. Dominique Bouhours sustentava que, na gramática, «quando os dois géneros se encontram, o mais nobre deve prevalecer», sendo obviamente da opinião que o género masculino era o mais nobre. Estamos conversados sobre a fraude que é a ideia de um suposto processo histórico neutro. Se tudo é político, por que é que algo tão importante como a linguagem deixaria de o ser? A língua tem história e ideologia.
A história portuguesa não é tão linear nesta matéria, não havendo um momento específico com a escolha deliberada de uma orientação masculina do idioma. Mas, há cinco séculos, já o primeiro gramático português, o aveirense Fernão de Oliveira, ironizava com a dominação do género masculino escrevendo que «marido e mulher ambos são bons homens». E, até recentemente, Mulher significava a fêmea da espécie humana, enquanto Homem dava significado a cada um dos representantes da espécie humana.
A utilização do senso comum como a capa do politicamente correto, que permite as «piadas fáceis» ou dá cobertura a generalizações opressoras, é apenas mais uma faceta deste conservadorismo. Daí, cataloga a linguagem inclusiva de subversão gramatical e apela ao imobilismo social – regra geral, preferem chamar-lhe “tradição” – contra a evolução da língua. Ora, a tentativa de querer transformar a língua em património material inalterável ou imutável é uma comóidia sobre qualquer orthographia official.
O debate sobre a linguagem inclusiva não é sobre meras discordâncias linguísticas, esconde questões mais profundas. A linguagem inclusiva não é um fim em si mesmo, garantindo todas as inclusões. É mais um passo numa luta em várias frentes, mas com um mesmo objetivo: vencer a agenda patriarcal.
Contudo, o catastrofismo linguístico proclamado com a minha utilização de “camarados” só mostra quão desinformado pode ser o debate público. A reviravolta final, que quase parece inspirada num filme de Shyamalan, é que foi um erro prontamente corrigido na frase seguinte. Mas, há males que vêm por bem, dado que serviu, uma vez mais, para desmascarar o fanatismo da campanha contra a linguagem inclusiva.
Artigo de opinião incluído na edição de 20 de novembro de 2018 do jornal Público.