Os mais atentos terão reparado que a canção vencedora do Festival da Canção (FC) 2022 e, por conseguinte, representante portuguesa na Eurovisão, é cantada em português e inglês (com maior incidência no inglês), apesar de se intitular “Saudade, saudade”.
Se, em 2021, conseguimos um dos melhores resultados deste século (apenas ultrapassado pela vitória inédita de Salvador Sobral em 2017), com “Love is on my side” dos The Black Mamba, a primeira proposta com letra totalmente em inglês enviada por Portugal, este ano voltamos a repetir aquela que, para muitos países, é a fórmula do sucesso.
A vitória de Maro foi unânime, com júri e público a colocarem a jovem artista no primeiro lugar das respetivas votações. Estará, assim, ultrapassada a “maldição” que exclui imediatamente uma canção dos favoritos à vitória no FC só porque é cantada total ou parcialmente em inglês? Parece que sim.
Haverá ainda muitos que defendem a regra do uso da nossa língua materna no Festival, mas será esta uma vontade lógica quando o objetivo é eleger uma representante para um festival cujo vencedor é definido por um público (maioritariamente) europeu e no qual não é possível votarmos no nosso próprio país? Para responder a esta questão é preciso analisar a história tanto do Festival Eurovisão da Canção (ESC), como também do FC e dos outros países a concurso.
Há quem pense que o ESC sempre teve a regra da língua materna, mas esta foi introduzida apenas em 1966, dez anos após o seu início, depois de a Suécia enviar uma música em inglês no ano anterior. Pouco depois, em 1973, foi retirada esta regra, mas apenas durante quatro anos. A regra caiu, permanentemente, apenas em 1999, levando a que 14 dos 23 países a concurso nesse ano apresentassem músicas em inglês. Em Portugal, esta regra manteve-se até 2017, ano em que tivemos as primeiras canções totalmente em inglês no FC.
Atualmente, a maioria dos países escolhe fazer-se representar com letras inglesas. Este ano teremos a concurso 40 canções em 14 idiomas diferentes. Como Portugal, há outros três países a optar pela letra bilingue e dez com propostas em línguas que não o inglês.
Mas, afinal, o que nos diz a língua sobre a probabilidade de vencer ou obter um bom lugar no concurso? Desde a introdução das semifinais (uma a partir de 2004 e duas desde 2008) apenas três canções não inglesas venceram o concurso (“Molitva” da Sérvia, em 2007, “Amar pelos dois” de Portugal, em 2017, e “Zitti e Buoni” de Itália, no ano passado).
Considerando o período de 2004 a 2021, cerca de 20% das músicas que acabaram nos primeiros três lugares do concurso são cantadas totalmente numa das línguas maternas dos países a concurso. Como países mais bem-sucedidos com músicas da sua língua materna temos a Sérvia e Itália (ambas vencedoras já mencionadas).
No caso português, as letras bilingues não são novidade. José Cid introduziu as línguas estrangeiras no concurso de 1980, com “Um grande, grande amor” e a ele se seguiram, por exemplo, Rita Guerra, em 2003, Sabrina, em 2007, e NonStop, em 2006 (todas elas sem bons resultados).
Dos países a concurso atualmente, apenas dois nunca apresentaram uma canção totalmente em inglês: a França, que tem tido resultados mistos ao longo dos anos apesar do forte crescimento na segunda metade da década passada; e a Itália, que esteve ausente do concurso vários anos, mas que voltou em 2011 e só por duas vezes ficou de fora dos primeiros dez lugares.
Assim, é seguro dizer que a língua inglesa pode dar alguma vantagem quando se trata de posições cimeiras, mas nunca será decisiva para uma vitória final. Que o digam o Reino Unido e a Irlanda que, apesar de terem o inglês como língua oficial, já não conseguem vencer o concurso desde o século passado e, muitas vezes, acabam nos últimos lugares da tabela.
Maro, ao cantar em português e inglês, terá assim mais hipóteses de chegar à final? É possível. Poderemos estar a caminhar para termos representantes com músicas em inglês ano após ano? Não parece, pois a grande maioria dos artistas continua a preferir enviar ao FC composições em português. Apesar de louvável, a imposição da regra da língua materna parece um limite à criatividade, e resta esperar que não só em Portugal, mas por toda a Europa, possamos continuar a ter canções em várias línguas, já que o ESC foi criado para celebrar a diversidade numa Europa pós-guerra.