«(...) [N]numa época em que – dizem-nos – a marcha da civilização passa pela inclusão de tudo, de todos e do seu contrário, não é legítimo excluir a maioria dos portugueses – a que não domina o “portinglês” – de uma parte da comunicação que devia ser feita na sua própria língua.»
A que conduz a banalização do erro gramatical? E a colonização anglo-saxónica da língua portuguesa?
A forma como o português é (mal)tratado na páginas do Público tem levado alguns leitores a protestar junto do provedor. «Seria bom que o zelo com que o Público denuncia (e muito bem!) as nefastas consequências do novo acordo ortográfico também se transferisse para as restantes dimensões da língua, promovendo, pois, uma revisão criteriosa da sintaxe e da semântica dos seus textos. Será pedir de mais?», questiona o leitor Eurico de Carvalho depois de analisar vários casos sobre os quais se debruça no longo correio que me enviou.
Um deles remete para cronistas do jornal. «Gostaria de saber quais são os critérios de contratação dos cronistas que nele têm tribuna. Entre eles, por certo, já não se encontrará o bom domínio da língua portuguesa. (…) Para que a presente denúncia não se cinja, no entanto, a meras considerações edificantes, vejamos, desde já, alguns exemplos (do mês de Agosto):
b) Em nome da saúde mental, pais precisam de descontrair.
(…) Em bom português, teríamos as seguintes correcções:
a) Desculpem‑me lá da maçada;
b) Em nome da saúde mental, pais precisam de se descontrair.»
O leitor considera que o mesmo problema afecta os jornalistas do Público, com destaque para os estagiários, e interroga-se: «Como é possível que escreva tão mal "a geração mais qualificada de sempre"? (…) Do ponto de vista lexical, realmente, o "portinglês" enxameia as páginas do Público (…). Num outro plano, o sintáctico, são inúmeras as construções frásicas que ‘macaqueiam’ a sintaxe do inglês, de que é exemplo o horripilante "é suposto".»
E dá mais dois exemplos concretos. O primeiro remete «para uma pergunta do Questionário de Proust (secção diária no mês de Agosto): "O que menos gosta na sua aparência física?" Em bom português, poderíamos ter, por exemplo, a correcção que se segue: "Na sua aparência física, de que menos gosta?"». O outro diz respeito à edição do Público de 6 de Setembro que «apresenta, na sua página 3, o seguinte título: "Pandemia fez quadriplicar [sic] lucros de alguns laboratórios". Numa edição mais antiga, aquando da entrevista a um secretário de Estado, eis que surge esta questão: "Como é que está a [sic] moral no Governo?"»
Encaminhei as reflexões do leitor para a secção de copydesk (escrevo a palavra como está determinado no Livro de Estilo, mas ela já entrou no léxico português grafada copidesque) onde trabalham cinco pessoas. Responde Aurélio Moreira, que começa por reconhecer que o leitor «tem toda a razão nas referências que faz e nos exemplos que aponta». E continua: «Há erros que, de tão comuns, se vão impondo a uma parte considerável da população, de tal modo que já passam por construções correctas, não suscitando dúvida ou estranheza. São casos flagrantes disso os dois primeiros exemplos que dá (…).»
Aurélio Moreira sugere depois que se faça um exercício: «No primeiro exemplo, "Desculpem lá a maçada", seria curioso propô-lo a estudantes de Português e observar quantos detectariam algum erro, incluindo professores de Português e profissionais da escrita, de tal forma o coloquialismo da expressão se tornou, entre nós, "familiar".» Esta familiaridade dificulta, na opinião do copydesk, o trabalho de quem, como ele próprio e a equipa de que faz parte, «passa a pente fino um grande volume de textos sob pressão de um tempo de produção diário (edição em papel) ou menor do que isso, o mais próximo possível do imediato (edição online).»
A habituação ao erro conduz depois a situações absurdas, como as que refere Aurélio Moreira: «Muito disseminados pela televisão, quer pelos múltiplos locutores que agora lhe têm acesso, quer pela incorporação que daqueles fazem os políticos nos seus discursos, quer pelas formas de português que são diariamente veiculadas nas legendas de filmes e séries, estes erros chegam a causar protestos e sugestões de correcção de sinal contrário, por parte de dois grupos de leitores: uns, que conhecem a gramática, quando não os corrigimos; outros, pela familiaridade das formas mais correntemente veiculadas, quando os corrigimos. Não deixa de ser perturbador.»
Começando pelo princípio: até 1 de Setembro passado, os títulos das crónicas dos colunistas não eram submetidos aos copydesks, sendo da responsabilidade dos seus autores. Desde 1 de Setembro, os textos e seus títulos passam pelo editor de Opinião e, se necessário, serão objecto de diálogo entre ele e o colunista. Os artigos publicados no interior de secções e suplementos específicos continuam a ser publicados pelos respectivos editores.
A resposta de Aurélio Moreira é pertinente, mas perpassa por ela um tom de resignação. Os erros de português seriam uma inevitabilidade. Não são, pelo menos no Público e enquanto vigorar o Livro de Estilo do jornal. O provedor compreende, por experiência própria, os constrangimentos que se colocam a quem tem de ser veloz e, simultaneamente, rigoroso. Mas é preciso não esquecer que a língua é o instrumento de trabalho do jornalista. Se a ferramenta é defeituosa, a obra sai imperfeita e defrauda os leitores mais exigentes.
O Livro de Estilo é claro: «Cabe sempre aos redactores fazerem uma última leitura dos seus textos, com especial atenção a pontuação, acentuação, concordâncias e gralhas, cuidado que não deve ficar para o editor nem para os copydesks.» Ou seja, o jornalista não pode escrever descuidadamente e ficar à espera que os copydesks façam o resto. Para isso já basta, como refere Aurélio Moreira, a generalidade dos oráculos (a informação que passa em rodapé) e da legendagem dos filmes estrangeiros transmitidos pelas televisões, e até a tradução de muitos livros, matéria que já foi objecto de uma coluna do provedor. Eles são um expoente da ignorância básica, do deixa-andar e da falta de respeito pelos leitores de quem os faz.
Mas quanto aos vocábulos ingleses usados no Público, tenho dúvidas. A língua italiana dominou a cultura renascentista. Terá chegado a vez de a língua inglesa dominar a cultura globalizada dos nossos dias? E será isso uma consequência inevitável da globalização e da Internet, coisas que não rimam forçosamente com cultura e língua civilizadas e que só com muita boa vontade podem ser consideradas instrumentos do pensamento?
Por outro lado, não sejamos ingénuos. Grande parte das palavras inglesas usadas na língua portuguesa, sobretudo as que nasceram em Silicon Valley com o aparecimento das novas tecnologias ou emergiram do mundo dos negócios, não corresponde a uma necessidade da língua ou do pensamento, mas apenas a um snobismo que se manifesta na linguagem corrente – quando não a um fenómeno de preguiça mental.
Mas de uma coisa o provedor está convicto: numa época em que – dizem-nos – a marcha da civilização passa pela inclusão de tudo, de todos e do seu contrário, não é legítimo excluir a maioria dos portugueses – a que não domina o “portinglês” – de uma parte da comunicação que devia ser feita na sua própria língua.
Crónica do provedor do leitor do jornal Público, José Manuel Barata-Feyo, do dia 23 de outubro de 2021. Escrita segundo a norma ortográfica de 1945.