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A estrutura passiva em português

Características gerais

A construção de uma frase requer a combinação de elementos necessários para a formação de uma predicação e o respeito por determinadas condições sintáticas, nomeadamente, no que concerne à ordem dos constituintes. Em geral, as gramáticas consideram que a ordem básica dos constituintes da frase em português é a SVO, ou seja, sujeito-verbo-objeto. Todavia, existem frases a que são aplicados processos sintáticos que originam uma organização de constituintes diferente da típica, como é o caso da estrutura passiva.

A diferença entre frase passiva e frase ativa reside na diátese, isto é, no modo como é perspetivada a situação descrita, como se observa nas frases seguintes:

(1) O Manuel lê o livro.

(2) O livro é lido pelo Manuel.

A frase (1) é uma frase ativa que descreve a situação perspetivando-a a partir da entidade com o papel temático de agente e que desempenha a função sintática de sujeito da frase «O Manuel». Na frase (2), embora a informação objetiva apresentada seja a mesma da (1), é a entidade com papel de paciente que desempenha a função sintática de sujeito da frase «O livro». Por outro lado, a entidade com o papel temático de agente «o Manuel» desempenha na frase (2) a função sintática de complemento agente da passiva, enquanto a entidade com o papel de paciente «o livro» assume na frase (1) a função sintática de complemento direto. 

Em ambas as frases estão presentes os mesmos papéis temáticos. No entanto, a hierarquia desses papéis é diferente, uma vez que, segundo Inês Duarte, na Gramática do Português1, numa frase ativa, o constituinte com o papel mais proeminente (agente e/ou experienciador) é, tipicamente, alinhado com a função sintática de sujeito, ao passo que na frase passiva este alinhamento «pode ser ignorado para obter uma estrutura temática e informacional diferente» (p. 431).

Numa perspetiva mais tradicional, Celso Cunha e Lindley Cintra abordam na Nova Gramática do Português Contemporâneo (2015, p. 507 a 509) a noção de conjugação da passiva. Isto significa que, de acordo com esta linha de pensamento, é possível definir paradigmas de flexão para a frase passiva. 

Em português, nem todas as situações passíveis de serem descritas linguisticamente através de frases ativas podem ser também apresentadas através de frases passivas. Para que tal seja possível, é necessário, mas não suficiente, que no núcleo verbal da correspondente frase ativa esteja um verbo transitivo. João Andrade Peres Telmo Móia assinalam em Áreas Críticas da Língua Portuguesa2 que um verbo transitivo, no sentido estrito que interessa para a construção passiva, é um verbo que tem pelo menos um argumento interno que recebe a função semântica de paciente e a função sintática de complemento direto. Também Inês Duarte faz notar que nas frases passivas em português não são admitidos verbos intransitivos (ex.: correr), verbos inacusativos (ex.: ocorrer), verbos que selecionam complementos preposicionados (ex.: viajar) e alguns verbos transitivos (ex.: acolher, conter, comportar) (p. 435).

Tipos de frases passivas

1470841238615_gramatica.pngExistem, em português, várias formas de exprimir a diátese passiva. Em 2004, o investigador inglês David Embick3 propôs a distinção entre particípios passivos eventivos, estativos e resultativos. Na Gramática do Português (p. 436 a 446), Inês Duarte argumenta a favor da adequação desta proposta à língua portuguesa, tendo como base a ausência ou presença de componentes agentivas e eventivas nas frases. Deste modo, estes tipos de estrutura passiva caracterizam-se da seguinte forma:

i) a passiva eventiva descreve situações dinâmicas em que uma das entidades envolvidas sofre mudança e tem como verbo auxiliar o verbo ser «A sandes foi comida pela Ana»;

ii) a passiva resultativa foca-se no resultado de uma mudança de estado, lugar ou posse e ocorre tipicamente com o verbo auxiliar ficar «A sandes ficou comida»;

iii) a passiva estativa, apesar de apresentar uma estrutura sintática semelhante à da passiva resultativa, descreve estados, sendo que o significado da frase não contém qualquer componente eventiva relacionada com a mudança de estado «A sandes está comida». O seu verbo auxiliar é sensível ao tipo de predicado; assim, com predicados que denotam propriedades estáveis, utiliza-se o verbo ser como auxiliar, enquanto com predicados que descrevem propriedades transitórias, o verbo auxiliar é o verbo estar.

As passivas resultativas (com ficar) e as construções passivas estativas (com estar) partilham a expressão de um estado, mas distinguem-se por apenas as primeiras implicarem dinamismo e uma alteração do estado das situações.

Há ainda também uma outra estrutura que pode ser considerada uma construção passiva e que é designada por passiva pronominal. Esta frase caracteriza-se pela ocorrência do predicador verbal numa forma não participial e acompanhado pelo pronome clítico se (geralmente designado por se passivo), como por exemplo «Venderam-se dez casas». A propriedade sintática que leva a considerar frases como a exemplificada anteriormente passivas é a concordância entre o predicado verbal e o argumento interno, o que indica que este último elemento é o sujeito da frase. Deste modo, está-se perante uma construção cujo sujeito é desempenhado não pelo primeiro argumento (argumento externo), mas pelo segundo argumento (argumento interno) de um verbo, o que constitui uma das características principais da frase passiva.

Em suma, tendo em conta os trabalhos desenvolvidos recentemente sobre as construções passivas, observa-se que as frases passivas em português são muito mais diversificadas estruturalmente do que algumas descrições podem fazer crer. 

 

1DUARTE, I. (2013), Construções ativas, passivas, incoativas e médias. In Raposo et al. (2013). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp 429-447.

2PERES, J.A.& MÓIA, T. (1995), Áreas Críticas do Português Contemporâneo. Lisboa: Caminho, pp. 207-248.

3EMBICK, David (2004). On the structure of resultative participles in english. In Linguistic Inquiry (nº 35).

 

Ver também "O ensino da passiva em Português Língua estrangeira".

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa