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O nosso idioma // História da língua

Graças à desgraça, apesar do que não pesa

A incoerência originária de duas locuções prepositivas

«[...] [C]omo "graças a" (mas inversamente em juízo de valor), também "apesar de" viu diluído seu sentido negativo para dar espaço a qualquer complemento neutro ou até positivo [...].»

 Quando nos manifestamos de formas como «eu me dei mal graças a você» e «apesar de o dia estar lindo, ficarei em casa», não imaginamos que, em certo estágio de nosso idioma, soaríamos um tanto incoerentes.

Digo incoerentes, ou no mínimo engraçados, peculiares, porque aquelas locuções prepositivas – «graças a»; «apesar de» – nasceram com um sentido não tão generalizado quanto têm hoje.

Quanto à locução «graças a», Maria Helena de Moura Neves, em seu Guia de Usos do Português, ensina:

«Pela origem da palavra graça (do latim gratia), a expressão significa "em débito a", "com recurso a", "com a ajuda de", o que implica um complemento de valor positivo (eufórico), em construção em que se faz referência a uma obtenção afortunada.»

Quer dizer que, originalmente, «graças a» pedia uma causa feliz, positiva, em construções assim:

«Graças a Deus, escapamos do acidente.»

«Passei no concurso graças à gramática do Pestana.»

«Recuperei meus pertences graças ao trabalho da polícia.»

Nada obstante, o sentido de causa generalizou-se para introduzir não só um complemento positivo, como também neutro ou até negativo, segundo ensina a mesma autora:

«Entretanto, a expressão também tem o significado mais genérico de "por causa de", "devido a", usando-se, portanto, também com complemento de valor negativo (disfórico), ou neutro.»

Daí não estranharmos, hoje, construções como estas:

«Tropecei graças ao brinquedo que ele deixou no chão.»

«Graças à sua grande boca, agora todos sabem meu segredo.»

E nossos escritores também alargaram o emprego:

«...destruindo pelo contínuo implante dos seus costumes o próprio exílio que procurou e criando-nos ao cabo, graças ao nosso desapego às tradições, ao cosmopolitismo instintivo e à inseguridade dos nossos estímulos próprios, um quase exílio paradoxal dentro da nossa própria terra.» (Euclides da Cunha)

«Mr. Richard entrou no escritório com o rosto jovial e assobiando uma das suas predilectas toadas inglesas; mas, graças ao duro ouvido musical de que era dotado o velho gentleman, tão transtornada lhe saía ela, que o próprio autor lhe custaria decerto a reconhecê-la.» (Júlio Dinis)

«O que aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias.» (Machado de Assis)

Com a locução «apesar de», o caminho foi inverso.

José da Fonseca, em seu dicionário, registra “a pesar” como «contra vontade; constrangidamente».

Literalmente advinda de «a pesar de» (isto é, «mesmo com o peso de», «em que pese»), sugeria antes uma circunstância adversa, um fator considerado negativo - o qual, todavia, não bastaria para impedir o evento melhor.

«Apesar de estar doente, irei trabalhar.»

«Estou contente, apesar de não tê-la mais comigo.»

«Apesar do tempo ruim, vou pescar.»

Alargando-se, porém, como «graças a» (mas inversamente em juízo de valor), também «apesar de» viu diluído seu sentido negativo para dar espaço a qualquer complemento neutro ou até positivo, representando agora mera concessão – independentemente da fortuna.

Hoje, pois, «apesar de» também introduz complementos que não são verdadeiros pesares, que não constituem circunstâncias negativas ou infelizes. Também os fatos alegres e positivos são agora pesados (pensados, levados em consideração) na concessão:

«Apesar de sua coragem, Antônio Roxo sentiu-se apavorado.» (Lindolfo Rocha)

«Mato Grosso, apesar de vastíssimo, já estava afinal exaurido para a exploração política…» (Euclides da Cunha)

«Do Costa e Silva, apesar de amigo, poderia afirmar que pregava de vez em quando o seu carapetão ao Diário do Grão-Pará…» (Inglês de Sousa)

«Todavia Florêncio da Silva por mais de uma vez apesar do seu amor jul­gou ver desgostoso…» (Joaquim Manuel de Macedo)

Esses são dois exemplos de expressões que, embora nascidas com determinado sentido e juízo de valor implícito, sujeitaram-se a uma expansão para admitir novos empregos e novas interpretações sobre a realidade.

É por isso que já não nos estranha afirmar «ficou pobre graças à desgraça que lhe sobreveio» ou «apesar de sua fortuna, anda triste».

Tanto a causa como a concessão se generalizaram.

 

N. E. (21/02/2023) – Sobre a possibilidade de associar um complemento de valor negativo à locução «graças a», consultar "O uso da locução graças a".

Fonte

Apontamento publicado no mural Língua e Tradição, no Facebook, em 27 de janeiro de 2023.

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