Vasco Graça Moura diz que se estivesse no lugar de ministro da Educação teria tentado suspender os programas de Português. O poeta e político sugere acções correctoras para os próximos três anos e propõe que professores de literatura preparem entretanto um programa alternativo.
P. - Escreveu recentemente que "os programas de português são um escândalo que não pode continuar". Portanto, deviam ser suspensos?
R. - A suspensão foi equacionada pelo Governo na entrada em funções. Chegou-se à conclusão de que isso acarretaria enorme prejuízo para os editores com manuais prontos, que tinham investido muitas centenas de milhares de contos. Pessoalmente, penso que o preço que se pagaria por alguns problemas para os editores na área do português seria amplamente compensado por uma reconversão radical do programa. O Governo não entendeu assim e tem vindo a projectar uma reformulação que terá lugar em tempo próprio. É uma alternativa. Mas isso não arreda um dado essencial, e que é escandaloso: não apenas a maneira como os programas estão elaborados mas como o Português é ensinado. Teria preferido que os programas fossem suspensos. Compreendo que é extremamente difícil, em relação a diplomas da responsabilidade do Governo anterior, resolver o problema dessa maneira. Mas do ponto de vista daquilo que seria mais importante, não tenho razão para pensar de maneira diferente.
P. - O que teria feito se estivesse no lugar de David Justino, quando ele se tornou ministro da Educação?
R. - Teria tentado suspender os programas. Mas admitindo, neste plano hipotético, que talvez isso não fosse possível. O que teria feito seria, por um lado, chamar os professores de literatura que têm criticado o actual estado de coisas e encomendar-lhes um projecto de programa. Não com a obrigatoriedade de o aprovar, mas para ter uma boa base de confronto, de discussão pública. Teria também pensado em outras linhas de acção. Uma é introduzir nos currículos a obrigatoriedade de leitura de livros, independentemente dos manuais. Ou seja, do programa devia fazer parte um conjunto de livros, que sucessivamente, mas desde muito cedo, os alunos fossem obrigados a conhecer.
P. - Quando surgiu esta polémica, em 2001, ainda o PS era Governo, deu uma conferência de imprensa com David Justino...
R. - Eu era então porta-voz para a cultura do gabinete-sombra do PSD.
P. - Falaram de "gravíssimo escândalo" e disseram que os programas deviam ser suspensos imediatamente. Entretanto, David Justino tornou-se ministro e, segundo as próprias palavras dele, engoliu o sapo...
R. - É o preço que ele paga por se ter tornado ministro. Eu não me tornei, de maneira que não preciso de o engolir...
P. - Tentou dissuadi-lo de continuar com os programas?
R. - Não. Troquei impressões com ele, suponho que em fins de 2002, tinha já o Governo alguns meses. Sugeri-lhe que reunisse com as pessoas que tinham estado do mesmo lado da barricada em 2001, a criticar os programas de Português, e que eram de todos os quadrantes políticos, para uma troca de impressões que veio a realizar-se uns dois meses mais tarde, com um almoço, em que participei. Ele deu uma série de esclarecimentos sobre a maneira como estava a tentar resolver o problema. O problema que se me pôs foi o de manter a coerência com o que se tinha afirmado quando se estava na oposição. Havia muita gente que estava do mesmo lado, e alguma da qual me interpelou: "Então agora, como é?". Achei que essas pessoas deviam ter direito a uma satisfação por parte do ministro.
P. - O ministro não concorda com os programas. Não os suspendeu com o argumento de que isso atrasaria a reforma curricular e custaria muito caro ao Estado, em indemnizações aos editores. Faltou coragem política?
R. - Não sei se é um problema de coragem política. É preciso conhecer bem o quadro de dados com que o Governo se deparou.
P. - Coragem política no sentido de se ser fiel à convicção.
R. - David Justino mantém a sua posição crítica [em relação aos programas]. Estou convencido que se ele não alterou as coisas é porque viu que não havia condições para isso.
P. - A professora Helena Carvalhão Buescu, por exemplo, diz que não pagar hoje é hipotecar o futuro. Estes programas vão durar pelo menos três anos, depois haverá eventualmente uma reformulação. Tudo isto demorará...
R. - Penso que isso é um tempo excessivo, será conveniente que o Governo tome medidas mais cedo.
P. - Mais cedo quando?
R. - Antes dos três anos. Entretanto tem de haver um novo programa que permita preparar manuais.
P. - Entretanto, centenas de milhares de alunos vão aprender por estes programas. Que preço se vai pagar por isso?
R. - Um preço muito alto. Não há que esconder isso. Já estamos a pagá-lo há uma porção de anos, continuaremos a pagá-lo. Por isso é que penso que enquanto se mantivessem estes programas era preciso desenvolver, junto dos professores, da população escolar, acções de aconselhamento, de estímulo.
P. - Quer concretizar?
R. - Por exemplo, desenvolver campanhas para o estímulo à leitura de textos em condições de compatibilidade com o programa. Lançar uma discussão em torno da ideia das selectas literárias – não para a retomar, mas para aproveitar o que dela for aproveitável &ndash, no que correspondia aos terceiro, quarto e quinto anos [hoje, sétimo, oitavo e nono]. A selecta corporizava um cânone. Sabia-se que quem fazia passagens de ano naquele período tinha lido um texto ou dois do Padre António Vieira, textos de Gil Vicente, de Almeida Garrett, fragmentos de Eça de Queirós, alguma poesia de Camões, enfim... Esta ideia devia ser tomada como base de uma reflexão para os programas: ponderar uma indicação de autores canónicos. Isto é muito importante e devia ser desencadeado desde já.
P. - Uma acção correctora durante estes três anos?
R. - Podemos chamar-lhe assim. Assim como era importante convencer os professores de que podiam pedir aos alunos certos tipos de leituras.
P. - Uma das polémicas nestes programas é o peso dos textos dos "media" e da publicidade. Não vê vantagens neste tipo de textos?
R. - Nenhuma. É das coisas mais imbecis que o programa contém. O contacto de um jovem com a língua não se faz apenas na escola, faz-se também através dos "media". Portanto, não há necessidade de aplicar na escola meios quase sempre viciados da maneira de utilizar a língua. Por outro lado, não é só a questão dos "media", é a questão de relatórios técnicos e textos científicos: se noutras cadeiras são postos em contacto com esse tipo de linguagem, não faz sentido carregar a cadeira de Português com ele. Isso não tem pés nem cabeça.
P. - Os responsáveis dos programas defendem a necessidade de textos mais próximos da realidade dos estudantes.
R. - Os responsáveis dos programas são linguistas e os linguistas têm ódio à literatura. Esse é o principal problema. Preocupam-se com a questão comunicacional e não com o valor da própria língua.
P. - São pessoas que não gostam de ler, como já disse a professora Maria do Carmo Vieira?
R. - Não as conheço pessoalmente... São pessoas para quem a literatura é uma realidade menor, e para quem os esquemas que aprenderam a partir do estruturalismo e de outras teorias, os diagramas, os gráficos e toda essa parafernália, têm mais importância do que dar aos estudantes o meio fundamental para adquirir uma competência a sério na sua língua, que é o património literário acumulado. Os programas mostram que os respectivos autores não compreenderam isso. O que é grave.
P. - Consagram a oposição literatura/língua?
R. - Pelo menos, [a oposição] literatura/linguística. Ou melhor, eles advogam uma concepção de língua que dispensa a literatura, o que é um erro de palmatória.
P. - Os estudantes chegam ao secundário com problemas básicos de leitura e escrita, sublinham os defensores dos programas, para justificar a introdução de textos mais próximos...
R. - Como os estudantes também chegam à universidade com deficiências terríveis, isso seria justificar que o ensino universitário se tornasse uma espécie de segundo ensino básico, o que não faz sentido, como é evidente.
P. - Como é que se resolve este problema?
R. - Chumbando quem não esteja em condições - primeira coisa que me parece fundamental e em relação à qual parece que há mais medo na sociedade portuguesa do que em relação aos jornalistas e ao segredo de justiça... E depois, se os estudantes chegam a essa situação, ver quais são as raízes e atacar o problema ao nível do ensino básico.
P. - Essas raízes podem ter a ver também com a formação dos professores?
R. - Com certeza. Há vários problemas de raiz, em relação a alguns dos quais eles não têm responsabilidade directa. Há o problema da escola em Portugal nos últimos 30 anos. Há o problema da bandalheira escolar por altura do 25 de Abril. Há o problema da instabilidade dos programas. Um professor que tenha hoje 40 anos, tinha 10 em 1974. Fez grande parte da sua escolaridade aos saltos, com passagens administrativas, com possibilidade de fazer não sei quantos anos sempre chumbado à cadeira de português, com trabalhos colectivos na universidade... Os próprios recursos humanos de que dispomos têm de ser completamente requalificados.
P. - Já falou ao ministro na ideia de convidar professores de literatura a elaborar um projecto alternativo. Que resposta é que ele lhe deu?
R. - Não a rejeitou. Fiquei com a ideia de que ele ia reflectir nisso.
P. - Esse convite seria para já?
R. Devia ser feito o mais depressa possível. Devia criar-se um grupo com professores ligados ao ensino da literatura, dentro dos que têm criticado o programa.
P. - Que lugar teriam aí os professores que defendem o programa?
R. - Aí não teriam lugar nenhum. Teriam mais tarde, no confronto das ideias. Agora tratava-se de ir buscar aos críticos qualificados um projecto que permitisse em alternativa ver melhor o que pensam, em relação ao Gil Vicente, ao Cesário Verde, ao Eça de Queirós, ao Padre António de Vieira... em relação a todos os que são o grande património da língua portuguesa e sem os quais não se pode aprender a falar português em condições.
P. - Em relação a outras acções que disse que se podiam desenvolver entretanto...
R. - A introdução de textos em volume a ler paralelamente com os manuais é um aspecto. Mas eu ia mais longe. Se fosse impossível fazer isso, tentaria interessar um jornal de grande circulação, como vocês, a fazer o que faz com os livros que divulga todas as semanas. Haver uma programação, anunciada pelo Estado, que cobrisse o país, com umas centenas de milhares de exemplares de determinados textos, a preços muito baixos - nuns casos poderiam ser antologias, noutros obras integrais -, instrumentos de trabalho que podem não chegar a um professor que porventura esteja interessado em contrariar os aspectos negativos do actual programa.
P. - Falou nessas ideias ao ministro?
R. - Falei na revisão das selectas.
P. - Qual foi a reacção?
R. - O ministro não aderirá à selecta, mas considera a importância do princípio que ela desenvolvia: uma lista de autores e uma série de textos. Era importante que algumas acções fossem permitir aos professores - e induzi-los a - corrigir os dados mais negativos do programa. Depois, há coisas que podiam facilmente resolver-se. Se fosse dada a garantia, em termos nacionais, de que em exames não apareciam programas de televisão ou regulamentos de concursos, era evidente que o professor se ia desinteressar de dar esses aspectos. É outra acção que me está a ocorrer.
Entrevista de Vasco Graça Moura à revista "Pública" do jornal "Público", de 01-02-2004