Vital Moreira afirma (Público, 18.12.07) que, sem uma reforma radical (suprimindo o "h" e não só), «dificilmente se deixará de cavar o fosso entre a versão oral da língua e a sua versão escrita». É certo que ele mesmo descrê disso, mas, seguindo-lhe o raciocínio, haveria então que padronizar os grafemas disponíveis para muitas sonoridades, acabar com os acentos, etc. Imagino um izemplo dessa radicalidade: Averia k proceguir uma mudansa muinto izijente e eichtraourdinaria para k u idioma nao perka a kuezao e acim rekupere oje o ceu ichtatuto de lingua komum... Cera pocivel ou cera ichdruchulo?
Nem sequer no plano da grafia as línguas se regem por uma lógica estrita. A grafia transporta informação etimológica e cultural, parentescos com outras línguas, matrizes de derivação, elementos para a decifração do sentido, etc., etc. A nova ortografia não aproxima a língua escrita da língua falada. Vejam-se as consoantes que «oscilam entre a prolação e o emudecimento», caso em que não se indica nenhum critério fiável, dando lugar às grafias facultativas e à maior das confusões.
O Acordo de 1945 em caso algum admitia grafias facultativas. O de 1990 consagra as divergências, logo não unifica nada. Se as alterações que introduz são muitas, é gravíssimo; se são mínimas, não se vislumbra a sua utilidade. As diferenças de pronúncia ou de grafia nunca obstaram à unidade da língua. Há até quem considere que o português e o galego são a mesma língua... E nos Açores fala-se português de lei, apesar da pronúncia. O intercâmbio lusófono nunca esbarrou com as diferenças ortográficas, que são insignificantes.
Quanto aos computadores, a informática sempre terá de resolver a questão das esdrúxulas com acento agudo entre nós e acento circunflexo no Brasil (ex.: topónimo/topônimo; higiénico/higiênico). Idem, quanto às palavras com e ou i referidas na Base V, que o Acordo não sabe como mandar escrever, e quanto a várias outras regras... A aprendizagem do português como língua estrangeira nunca foi dificultada pelas diferenças ortográficas. O Brasil leva a melhor porque tem uma pronúncia muito mais clara, mais musical e mais bem articulada, enquanto a nossa se engrola em sonoridades amorfas entremeadas por sch... sch...
É errado pensar que «a transição para uma nova norma ortográfica se faz sem grandes dificuldades para a generalidade dos utentes da língua» (V. M.). Passa-se exactamente o contrário. O interesse nacional tem aqui uma dimensão científica: não deve abrir-se a porta ao erro. Nesse plano, o Acordo foi censurado por muito boa gente com autoridade plena na matéria. E, como me escreve um reputado especialista, deve ponderar-se o seguinte:
— custos económicos para o mercado editorial em geral e o dos livros de estudo em particular, os utensílios computacionais, as toneladas de papel timbrado, os milhares de letreiros que passam a conter erros de ortografia (sei lá que mais, é só pensar um pouco);
— custos psicológicos e sociais para um país que de repente deixa de saber escrever;
— custos no sistema de ensino, que passará anos de turbulência em todas as disciplinas, que não apenas em português;
— custos culturais, com afastamento significativo da grafia portuguesa da sua matriz românica, vindo até a acontecer que, em muitos casos, a língua latina passará a ser mais tangível no inglês do que em português; ao mesmo tempo, também, um afastamento ainda maior dos mais novos em relação ao património documental do passado.
E benefícios? Não os vejo. Primeiro, porque a unidade e a diversidade da língua portuguesa não passam pela questão ortográfica; por exemplo, em relação ao Brasil, o que nos separa mais profundamente é o léxico, a pronúncia, a prosódia, a morfossintaxe. A ortografia é totalmente irrelevante. Em segundo lugar, se se fala de facilidade da aprendizagem da escrita, estamos no plano da pura ficção, já que nenhuma melhoria se verificará nesse domínio; as escritas não são fonéticas e o cérebro humano tem mais do que capacidade para lidar com isso. Os políticos deveriam ponderar seriamente estas coisas, antes de meterem o país em mais um sarilho sem pés nem cabeça. Nada melhor do que esta reflexão para fechar o ano.
in Diário de Notícias, de 26 de Dezembro de 2007