« [...] Dizem ser possível que, pela segunda vez, uma mulher venha a presidir à Assembleia da República. Se isso acontecer, não vai faltar quem queira chamar-lhe "Presidenta". Será assim? Presidente ou Presidenta? [...] »
1. O rigor da gramática
Presidente, para quem não sabe, é o particípio presente do verbo presidir. Assim era no latim (praesidente(m), no acusativo). Ora, no particípio presente, apenas existe uma forma, seja para o masculino, seja para o feminino.
Tanto assim é que não vejo as defensoras e os defensores da forma "presidenta" fazerem igual campanha no tocante a outros particípios presentes. Não creio que defendam que há "assistentas" universitárias ou médicas "assistentas"; como não se referem a "pacientas", se se tratar de mulheres; como não vejo que reclamem que as mulheres sejam "ouvintas" e não "ouvintes" ou que na rua haverá vendedoras "ambulantas". Os exemplos poderiam multiplicar-se até à exaustão, já que os particípios presentes, em /a/, em /e/ ou em /i/ são tantos quantos os respectivos verbos.
Ou seja, tal como não há "ouvintas" nem "ambulantas" nem "assistentas" nem "aprendentas", obviamente também não há "presidentas".
2. Um princípio que fere a igualdade de género
A questão, porém, é mais delicada do que parece e volta-se contra quem defende a forma "presidenta". Explico.
É que a defesa da forma "presidenta" parece assentar no princípio (errado) de que o /e/ seria uma forma de masculino, que importaria substituir pela forma de feminino /a/. Tal princípio acaba por ser o implícito reconhecimento de que o feminino tem o exclusivo do /a/, o que não é verdade como a seguir direi, e de que o masculino tem as demais vogais, entre elas o /o/ e o /e/, além de outras, eventualmente. Ora, aceitar isso é aceitar uma desigualdade gritante, que a gramática não valida. Desigualdade, porque seria confinar o feminino ao /a/ e deixar para o masculino tudo o mais. Isso, sim, é desigualdade.
3. A falsa questão do feminino /a/
Os exemplos poderiam multiplicar-se, uma vez mais até à exaustão. Prova de que o /a/ não é um exclusivo do feminino, o que parece não suscitar objecções a ninguém.
4. A gramática e a igualdade de género
Não digo que não haja correcções a fazer, do ponto de vista das regras gramaticais, no tocante à igualdade de género. Há. E talvez não sejam poucas. Mas manda a prudência que sejamos avisados e: a) que não enveredemos pelo disparate; b) que não acabemos por cair exactamente no contrário do que queremos, ou seja, acentuar a desigualdade, que era o que sucederia se "confinássemos" o género feminino à letra /a/.
5. Um simples exemplo, entre muitos: a concordância
Aqui temos, por exemplo, uma situação em que, não tenho dúvidas, o futuro acabará por reconhecer que as velhas regras precisam de ser reajustadas: a concordância. Um exemplo apenas: quando numa sala há 5 homens e 40 mulheres, manda a regra que se diga, se for esse o caso, que devem estar «todos calados». Aqui, a reclamação faz sentido, porque a desigualdade é manifesta. Não faltará muito que venha a admitir-se como certa a liberdade de escolha entre «todos calados» ou «todas caladas», já que seria absurdo fazer aplicar a regra da aritmética.
Em suma: a língua regista muitos reflexos de séculos de desigualdades, entre elas a de género; corrija-se o que tem de ser corrigido, que não será pouco; mas não se caia no erro de ser «maior a emenda que o soneto».
Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945, transcrito com a devida vénia, da página do autor no Facebook, em 13 de fevereiro de 2022.