Quando completa 200 anos, o Brasil não pode deixar de ver a nova guerra no mundo. O que há para celebrar internamente? Que país é este que vai a eleições a 2 de Outubro, semanas depois de festejar a independência (7 de Setembro)? Este é o centro de uma conversa em Lisboa da jornalista Isabel Lucas* com o ministro dos Assuntos Exteriores do Brasil, Carlos França, um semana após ter condenado na ONU a invasão da Ucrânia pela Rússia.
«(...) [ A identidade brasileira] é a língua, é o sentimento que temos da herança portuguesa, a contribuição de indígenas, dos negros que vieram com a vergonha da escravidão, mas hoje parte da matriz brasileira (...) que não é exactamente da América hispânica. (...)»
Este ano de 2022, ainda que nestas circunstâncias, é especial. Comemoram-se os 200 anos da independência do Brasil, os 100 anos do modernismo, é também um ano de eleições. Como é que o Governo está a olhar para este ano?
A história do Brasil é única. A Escola de Sagres foi algo mais revolucionária do ponto de vista tecnológico do que é a NASA. Foi preciso uma técnica e ousadia que poucos povos do mundo podiam ter, e nesse sentido estou muito orgulhoso da herança portuguesa no Brasil. O facto de a corte ter sido transferida para o Brasil em 1808 é algo verdadeiramente extraordinário pelo que representou na consciência do país. A presença da elite dirigente mudou a maneira de ser do Brasil.
Isso é bom ou mau?
Deu-nos um sentimento de orgulho. Sou tão impressionado pela vinda da corte portuguesa para o Brasil que o final do número do meu celular é 1808. Mudou a história do mundo, sobretudo mudou a do Brasil. Trouxe um sentimento de unidade, mágico até hoje. Nos doze anos que passei no exterior, oito foram na América do Sul: duas vezes no Paraguai e uma na Bolívia. Uma vez fui a Cobija, cidade no norte da Bolívia que faz fronteira com a cidade de Brasiléia, no estado do Acre, para inaugurar uma ponte pedonal e de trânsito automóvel. Foi em 2005. Os brasileiros saem de Brasiléia e vão até Cobija, onde há duas excelentes sorveterias, compram um sorvete e voltam para o lado brasileiro para sentar nos bancos do jardim. Porquê é que esses brasileiros não se sentem bolivianos? E continuam a falar português. O rio não é uma barreira física, mas cultural, linguística, de pensamento. Ali não se fala espanhol. O sentimento de nacionalidade e de unidade que o Brasil tem na América do Sul foi-nos dado pela ida da família real portuguesa para o Brasil em 1808. Essa foi a semente.
Sabe responder à pergunta que fazem muitos estudiosos brasileiros: o que é a identidade brasileira?
É a língua, é o sentimento que temos da herança portuguesa, a contribuição de indígenas, dos negros que vieram com a vergonha da escravidão, mas hoje parte da matriz brasileira. Sinto que isso criou esta identidade. Mas penso que ela nasce da língua, da cultura e desse sentimento de pertencer a alguma coisa que é sul-americana, mas que não é exactamente da América hispânica. Por isso, digo que é algo quase mágico e tem a ver com essas características próprias do Brasil. Nenhum outro país da América do Sul recebeu a família real; isso trouxe um sentido de que nós éramos diferentes, e mudou a nossa história.
Estes 200 anos vão-se celebrar num contexto marcado por eleições, pós-pandémico, com o país que continua bastante polarizado...
O mundo está polarizado. Isso não é só do Brasil, é algo que vejo na Europa, e muito nos Estados Unidos.
Os Estados Unidos têm sido modelares para o Brasil, e até muito recentemente para a política brasileira.
É. E lamento que seja assim. Devíamos ser uma sociedade mais capaz de criar consensos e que repelisse a divisão. A divisão, no nível que estamos vendo hoje, é resultado de algo que talvez ainda não tenhamos identificado na sua totalidade; um fenómeno que advém do uso das redes sociais desse mundo tão instantâneo que faz com que todos estejamos conectados a todo o momento, onde parece haver muita informação sem nenhum filtro, com muito pouco respeito pela privacidade e sem espaço para reflexão, e, mais do que isso, sem espaço para o contraditório. As coisas são lançadas, pela disseminação tornam-se verdade. Falo do contraditório dialético, o debate, a discussão. Essa polarização é nefasta.
E que sentimento irá prevalecer?
Teria de ser um sentimento de união. Um sentido de agradecimento até a Deus por esse carácter único que tem a história brasileira. O bicentenário deveria servir para uma reflexão. Do quanto o país avançou, dos desafios que temos ainda para enfrentar no futuro, de como nos podemos tornar uma nação cada vez mais justa, socialmente mais igual e com projecto de futuro. Talvez a polarização seja um reflexo desse debate um pouco desorganizado sobre o que queremos como nação, como povo, e qual o futuro do Brasil enquanto país. Digo que a chancelaria do Brasil, o Itamaraty, é uma casa com 200 anos a pensar a soberania nacional, uma herança de 1808 que redundou na independência em 1822 por Pedro I. Era uma Independência, mas ao mesmo tempo havia ligação com D. João VI que continuava rei de Portugal. É uma história única.
Os 200 anos são também para falar do presente e neste presente há sombras, como a deflorestação da Amazónia que em 2021 cresceu 29%, e cresceu também o fosso entre ricos e pobres que a pandemia veio acentuar. Há 54 milhões de pobres e mais de cinco milhões de miseráveis. Como vão lidar com problemas desta dimensão?
Com muita clareza e indignação. Esse fosso entre pobres e ricos é algo que estamos a tentar diminuir através de políticas sociais. O Bolsa Família, que era de 190 reais (aproximadamente 37 euros), é desde Dezembro do ano passado de 400 reais, sendo que mais de uma pessoa na mesma família pode receber. Talvez não seja ainda o suficiente mas é algo muito significativo dentro da realidade brasileira. No início de 2022 conseguimos reverter a queda da economia. Mas não é apenas a pandemia a afectar a economia. Insisto que as sanções económicas e financeiras à Rússia neste momento e a selectividade nos critérios de embargo prejudicam a economia de países como o Brasil e vão ter um efeito nefasto na economia mundial, talvez maior do que possamos imaginar. Isso não contribui para o fim da pobreza nem para o fim do conflito. Em relação à Amazónia, não negamos esse desafio que estamos tentando enfrentar de algumas maneiras, como por exemplo aprimorando o cadastro rural. Hoje em dia é muito difícil descobrir quem está a fazer corte ilegal e quem está a fazer corte permitido por lei porque as áreas não têm tem registo. Está a haver uma actualização desse cadastro para que a terra passa a estar vinculada a um nome. A par com isso, estamos aprimorando o sistema de satélites de modo a saber a quem pertence uma dada área, se houve um desmatamento e se o mesmo foi legal ou ilegal. Normalmente o delito ambiental está associado a outro tipo de crime. Os madeireiros ilegais cometem crime de lavagem de dinheiro ou exportação ilegal, e há denúncia de mão-de-obra em condição análoga à da escravidão. Temos aplicado multas financeiras e medidas legais
Tais como?
Prisão dessas pessoas, congelamento de activos.
Está a ser aplicado?
E tem dado resultado. Não há no Brasil uma política de destruição da Amazónia. Pelo contrário. Há uma política de preservação da Amazónia.
As denúncias são muitas por parte de ambientalistas que falam também de crime contra a população indígena.
As denúncias são apuradas. Há um cuidado na protecção dos indígenas. Foi uma população prioritária na pandemia, foi vacinada. Pense o que é manter vacinas numa cadeia de frio para vacinar uma aldeia no meio da Amazónia! É uma população que está vacinada em 98%. Não há um descuido com indígenas no Brasil. Não há uma política deliberada do Governo de acobertar criminosos ambientais e destruir a Amazónia, mas temos limites orçamentais.
O que é que o Brasil está planear para celebrar estes 200 anos de independência?
Temos uma comissão que funciona no âmbito da Secretaria Especial da Cultura e temos uma comissão do centenário formada dentro da chancelaria brasileira e o programa tem uma dimensão de Estado e uma dimensão internacional. Temos planeados eventos em vários países da América do Sul, colóquios, publicações e debates para tentar entender, por exemplo como foi vista a Independência do Brasil na Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia. Inclui ainda os países de língua portuguesa. Todos serão convidados para as celebrações.
O acordo de Mobilidade que o Brasil acaba de assinar com a CPLP faz parte disso?
Foi aprovado de maneira muito expedita. É um avanço muito claro na integração e algo que vale a pena celebrar nesses 200 anos.
Cf. Ministro dos Assuntos Exteriores do Brasil: “A nossa posição é de não apontar o culpado” na guerra
Na imagem à esquerda, A Chegada de Dom João VI à Bahia (1952), de Cândido Portinari (1901-1962).
Entrevista do ministro brasileiro dos Assuntos Exteriores, Carlos França, concedida à jornalista Isabel Lucas, a propósito da comemoração em 2022 do bicentenário da independência do Brasil. Transcrita, com devida vénia, do jornal Público, de 13/03/2022, mantendo-se a norma ortográfica de 1945, conforme o original.