« (...) O caso de cidadãos brasileiros discriminados por razões linguísticas em Portugal é recorrente (...).»
Foi notícia uma terapeuta da fala (ou fonoaudióloga, termo usado no Brasil) ter visto a sua candidatura ao exercício da função no Serviço Nacional de Saúde ser rejeitada com base no seu deficiente domínio da língua portuguesa, aparentemente pelo facto de ser brasileira e falante de português do Brasil. O caso de cidadãos brasileiros discriminados por razões linguísticas em Portugal é recorrente e este preconceito tenderá, acredito, a intensificar-se com a chegada de mais cidadãos brasileiros com formação superior. Já me referi à questão em texto anterior, a propósito de dissertações e teses apresentadas por alunos brasileiros a universidades portuguesas e ocorre-me a discriminação de que são alvo colegas brasileiros, com competências e currículos inatacáveis, quando se candidatam a ensinar linguística ou língua portuguesa em instituições públicas de ensino superior.
Sem me ater ao caso concreto (que provavelmente seguirá trâmites adequados), permito-me partilhar duas ideias a este respeito.
1) A variedade brasileira do português é português: existe intercompreensão entre falantes das variedades portuguesa e brasileira; a língua oficial do Brasil é português; as relações entre os dois países e o empenho em ações comuns de difusão da língua portuguesa têm-se intensificado. É absurdo, pois, exigir a falantes brasileiros de língua portuguesa e que obtiveram as suas formações no Brasil que façam prova de que falam português, seja como língua materna ou (pasme-se) como língua estrangeira.
2) Na formação dos terapeutas da fala, existe uma forte componente de descrição linguística do idioma de trabalho, i.e., ao conhecimento implícito da língua junta-se o conhecimento explícito, científico, das características do idioma. Esta formação é imprescindível ao desempenho da atividade, pois é fundamental determinar a natureza exata do problema em análise para a adoção de terapia adequada e eficaz. Um terapeuta de fala, independentemente da variedade que fale, tem conhecimento científico que lhe permite intervir na recuperação de falantes de qualquer variedade linguística estabelecida. Em suma, se um cidadão fala, de facto, português e tem formação adequada, certificada por instituição de ensino superior portuguesa, não compreendo como as suas competências para o exercício da terapia da fala em Portugal possam ser questionadas.
Será que os membros do júri destes concursos sabem o que é variação linguística? Será que estão informados da natureza pluricêntrica do português e das políticas linguísticas supranacionais em vigor? Será que a única variedade que aceitam é a variedade padrão (lisboeta) do português? Será que variedades divergentes do padrão são igualmente consideradas inaceitáveis para o exercício da profissão? Será que a sociedade portuguesa tem condições para prescindir do contributo de profissionais certificados por não serem "portugueses de gema"? Será que casos semelhantes ocorrem nos espaços de outras línguas pluricêntricas (e.g. inglês ou espanhol)?
Além de inaceitável, é revoltante continuar a assistir a situações como esta. Das autoridades de ambos os países exigem-se, portanto, medidas sérias, inequívocas e exequíveis, para acabar com elas.
Artigo publicado no Diário de Notícias em 28 de novembro de 2020.