«(...) É Wanda Ramos quem, em 1970, num texto intitulado Nas coxas do tempo, radicaliza em termos vocabulares e metafóricos o discurso do desejo sexual, colocando a poesia num plano assumidamente erótico da consciência feminina do sexo e do amor. (...)»
As práticas censórias da ditadura salazarista, amparadas pela norma clerical que moldou a cultura moral portuguesa, e que continua subterraneamente presente em vários recantos do inconsciente da nação, sufocaram a imaginação erótica e muitas das suas expressões literárias possíveis. Cidadãos “virtuosos”, porque inimigos de representações artísticas do corpo, do desejo e do sexo, ocuparam lugares-chave da cultura oficial ou a ela ligados, e a partir dos quais expulsaram a experiência de Eros, denegando em consequência os múltiplos aspetos e possibilidades artísticas do sexo. Esta é a explicação mais simples, mas também a mais adequada, para a escassez de cultores literários do erotismo em Portugal.
O romance português acolheu muito intermitentemente o discurso do desejo e raras vezes se envolveu com temáticas de ordem sexual. Mesmo assim, quando tal aconteceu foi sempre com os cuidados da “decência” imposta pela normalidade da ordem social e dos respetivos atavios morais. Coube à poesia, graças à sua energia de representação mais relacional do que factual da realidade (no caso, da sexualidade), a aproximação imaginativa a regimes eróticos da experiência. E foram as mulheres quem mais avançou (e arriscou) nesse sentido. Tal não surpreende, pois a onda de empoderamento feminino, que inundou as democracias no período a seguir à II Guerra Mundial, encontrou na sexualidade um dos seus núcleos mais dinâmicos de afirmação e na poesia um dos seus regimes mais imediatos de expressão.
Na segunda metade do século XX, a poesia portuguesa sinalizava à distância o discurso florbeliano do corpo e do desejo tornado ponto de vista afetivo de uma relação com o outro. Mas é só no final dos anos 60 que a credibilidade intelectual do discurso do corpo e do sexo chega a Portugal a partir de um mundo estrangeiro que se mostrava em transformação de atitudes e mentalidades. É Wanda Ramos quem, em 1970, num texto intitulado Nas coxas do tempo, radicaliza em termos vocabulares e metafóricos o discurso do desejo sexual, colocando a poesia num plano assumidamente erótico da consciência feminina do sexo e do amor.
Em 1986 tive oportunidade de propor e desenvolver estes mesmos temas num livro que, por estas e outras afirmações, acabou envolvido em várias polémicas e contestações. Intitulado 10 anos de poesia em Portugal 1974 –1984. Leitura de uma década (Lisboa: Editorial Caminho), este livro coloca ainda hoje uma importante memória crítica da notável força erótica da poesia de mulheres que se afirmaram ao longo da década de setenta do século XX. Na sequência do livro Minha Senhora de Mim (1971), de Maria Teresa Horta, e marcada por uma aguda intencionalidade corporal e amorosa, irrompe nesta década a poesia de Olga Gonçalves, Isabel de Sá, Isabel Ary dos Santos Jardim, Fátima Murta, Fátima Maldonado, Rosa Lobato de Faria, Isabel Mendes Ferreira. Mulheres em que eros se apropria da comunicação poética, significando-a acima de tudo pelo lugar da libido. O olhar masculino não desapareceu, mas sem dúvida que perdeu a exclusividade discursiva que detinha.
N.E. — Este artigo contextualiza o tema em foco no livro erótico Prova-me – o primeiro romance do género escrito por uma mulher, em Portugal –, cuja autora, a professora Lúcia Vaz Pedro, em entrevista ao Jornal de Notícias do dia 14 de agosto de 2021, fala dos requisitos que fazem a diferença da «literatura de cordel ou cor-de-rosa» da «boa literatura erótica»:
«Portugal ainda é um país com muitos preconceitos. Escrever um romance erótico remete para um género menor, literatura de cordel ou cor-de-rosa. No entanto, a boa literatura erótica tem muitos requisitos que não são contemplados num romance de outro género. De facto, dei por mim a ser muito mais criteriosa no vocabulário, a lapidar não só o texto e a frase, mas também a própria palavra que deve ser escolhida com subtileza. Para que um livro erótico aborde o sexo sem ser demasiado pornográfico tem de haver um equilíbrio, a medida certa, que nem sempre é fácil de encontrar.»
Texto do critico literário Manuel Frias Martins, no Jornal de Notícias do dia 14 de agosto de 2021.