« As palavras mudam todos os dias, mas de forma muito mais lenta do que as mudanças do aspecto de um ser humano.»
Se andarmos para trás no tempo a partir da palavra portuguesa, passamos pelo padre de textos portugueses antigos, pelo pater latino – até chegarmos à reconstrução do proto-indo-europeu: *ph₂tḗr (se esta palavra tem este aspecto estranho, é porque ninguém a escreveu – as letras representam os supostos sons reconstruídos a partir da comparação das várias línguas indo-europeias).
Ora, este *ph₂tḗr deu origem ao pater latino (e suas descendentes) – mas também às várias palavras para pai nas línguas germânicas. Nestas, o som inicial do proto-indo-europeu transformou-se num f ou som semelhante: father, por exemplo. Este é apenas um exemplo de vários: em muitos casos, as palavras que começam por p nas línguas latinas, começam por p nas línguas germânicas. Pensemos, apenas para dar mais um exemplo, no «peixe» português e no fish inglês. Ambas vieram do proto-indo-europeu *peysḱ-.
Pois bem: de *ph₂tḗr, chegámos a pai. Foram grandes mudanças…
Podemos cair no erro de pensar que esta sucessão se fez em etapas bem definidas. Seria algo do género: durante muito tempo, a palavra foi *ph₂tḗr. Depois, por algum motivo, houve uma rápida mudança até pater na zona do Império Romano – esqueçamos os germânicos por agora, bem como todas as outras subfamílias indo-europeias. Os romanos usaram essa bela palavra durante séculos e séculos, sem mudanças, até que, talvez no fim do Império Romano, a palavra começou a mudar até chegar às formas das línguas latinas: pai, padre, pare, père, etc. Estas formas seriam, agora, as definitivas em cada uma destas línguas…
Este engano acontece porque olhamos para a palavra na escrita. A escrita é uma espécie de fotografia de um determinado momento da palavra. E, tal como as fotografias, a escrita dá-nos a sensação de estarmos perante uma língua parada, quando, na verdade, está sempre em movimento. Mais: a escrita leva-nos a crer que o ideal é a língua não mudar. Quando, na verdade, uma língua parada é uma língua morta. Isto não é apenas uma frase bonita – é uma realidade muito concreta da linguagem humana. Vou explicar.
Quando olhamos para a sucessão de palavras que vai de *ph₂tḗr a pai, vemos relativamente poucos passos:
*ph₂tḗr > pater > padre > pai
Ora, cada um destes passos é apenas uma cristalização de um determinado momento na longa evolução de cada palavra – ela nunca pára de ser moldada pelas gerações.
Estas mudanças são quase imperceptíveis, mas contínuas… Para perceber melhor isto, imaginemos que tiramos uma fotografia ao nosso filho todos os dias, durante uma semana. Se pusermos as fotos ao lado umas das outras, dificilmente veremos diferenças – a não ser que ele tenha mudado de penteado num dos dias.
Já se fizermos o mesmo exercício com uma fotografia a cada mês, será possível observar algumas mudanças.
Se fizermos o exercício uma vez por ano durante vinte anos, então, sim, temos uma sucessão de fotografias que documentam uma mudança profunda.
As palavras mudam todos os dias, mas de forma muito mais lenta do que as mudanças do aspecto de um ser humano. Se apenas olharmos para as fotografias de cada palavra ao longo da nossa vida, é um pouco como se olhássemos para as fotografias de uma pessoa ao longo de uma semana. Já se olharmos para as palavras ao longo dos séculos, podemos ver as diferenças que vão aparecendo e moldando, sem cessar, as línguas.
As mudanças são, quase sempre, muito subtis. Aparecem porque cada um de nós diz cada som de forma ligeiramente diferente – temos bocas e gargantas diferentes e ouvimos as palavras também de maneira ligeiramente diferente. Se pedirmos a cem pessoas para dizer a letra e e se analisarmos com atenção cada som, veremos que são ligeiramente diferentes. E, no entanto, reconhecemos essa nuvem de sons diferentes que saem das bocas dos falantes como o mesmo som, o que nos permite construir palavras que partilhamos com os outros – as línguas vivem nesta permanente tensão entre o que é individual e o que é colectivo.
Ora, essa nuvem de sons vai mudando ao longo do tempo – e no espaço. Os sons que ouvimos em determinada época para representar a mesma letra – uma letra será a representação gráfica dessa nuvem – não serão os mesmos. Usando os termos comuns na linguística, a nuvem de fones em redor de cada fonema vai mudando ao longo do tempo. Pense o leitor na miríade de maneiras de dizer o som v em todo o país. Se reparar bem, há muitas leituras possíveis. Pois bem: os sons mudam, mas continuamos a reconhecer o mesmo fonema, ou seja, a mesma unidade. (Uma nota: a nossa ortografia tende a representar a fonologia da língua — e não a fonética. Se representasse a fonética, teria de ser diferente de região para região, de época para época…)
Porque mudam as línguas?
Já percebemos que as línguas mudam – mas mudam por que razão?
Este é um facto das línguas pouco conhecido e muito interessante: a mudança ao longo do tempo acontece porque existe variação entre os falantes – e isto acontece inevitavelmente, porque não há dois falantes iguais, com corpos iguais e vidas iguais. Falo de algo concreto, físico: cada som é dito de maneira diferente porque as gargantas e as bocas de cada falante são diferentes – e a maneira como aprendemos o som também é sempre diferente – somos todos ensinados por um conjunto de pessoas diferente.
Ora, as tendências de determinados falantes ou regiões vão ganhando força, substituindo as tendências de outros falantes ou regiões – num jogo muito complexo e imperceptível ao «ouvido nu», este ou aquele som são trazidos para a frente do palco linguístico. Só um exemplo concreto: o som tch era muito comum no país inteiro. Por caminhos que são impossíveis de reconstruir, começou a recuar, a ser substituído pelo som ch, que já existia, mas era usado apenas em certas palavras. Desta forma, perdeu-se a distinção que ainda hoje vemos, na ortografia, na diferença entre a letra x e o dígrafo ch.
Estas mudanças não são apenas sonoras: acontecem no significado das palavras; na conotação que damos a cada palavra; nas nossas atitudes perante cada palavra (ou conjunto de palavras). Tudo isso muda ao longo do tempo – porque é ligeiramente diferente em cada falante. Na contínua negociação do significado das palavras, vamos sublinhando este significado e vamos apagando o outro; vamos começando a achar que esta palavra é menos aceitável – ou que afinal já podemos dizer esta outra palavra em qualquer situação. É um jogo subtil, complexo, difícil de descrever.
Mudanças lentas
Ainda uma última pergunta: como é que tão poucos reparam nesta mudança contínua?
Primeiro, porque a escrita e a existência de uma norma levam-nos a crer que a boa língua é a língua que existe, parada, nos dicionários e gramáticas na estante. Ora, nem nos dicionários nem nas gramáticas ela está parada, mas muitos estão convencidos de que sim. Mais do que isso: estas mudanças, que arrepiam tanta gente, fazem-se de forma lenta, ao longo de décadas ou séculos.
Depois, quando de facto notamos algumas das mudanças, um mecanismo mental que me parece existir em todas as sociedades leva-nos a crer que a mudança é sempre um erro. Como ainda há pouco tempo ouvi um linguista a dizer, com muita graça, todos nós aceitamos que a língua muda – só não gostamos da maneira como ela muda…
E, no entanto, ela muda! Continuando a olhar para os sons, podemos ver como o r português está a mudar neste preciso momento! E também podemos ver como a qualidade das vogais nas sílabas átonas é muito diferente da pintura que nos dá a escrita – não só o o se lê u em muitas sílabas átonas, como, em muitos casos, esse «u» tem já uma leitura muito mais sumida do que pensamos – numa conversa normal, o último o de «todo» já é uma vogal quase desaparecida.
Isto são apenas exemplos. Basta ouvir o discurso de um falante de 70 anos e outro de 17 anos numa qualquer terra portuguesa para vermos diferenças entre falantes vivos. Aliás, voltando atrás, basta ouvir dois falantes quaisquer para vermos como a língua não é igual em duas bocas…
Enfim, há palavras que ficam iguais durante muito tempo, outras que mudam rapidamente. Há sons que sofrem alterações que levam a mudanças noutros sons. As vogais, por exemplo, estão sempre a dançar um pouco, nunca estão fixas, pois o seu timbre depende da exacta forma que damos à boca e, por isso, ninguém produz uma vogal exactamente igual a outra pessoa. Quando a nuvem de sons em redor de uma letra vogal começa a aproximar-se de outra vogal, esta desloca-se para manter o mesmo grau de diferença – um mecanismo inconsciente que encontramos em várias línguas.
Quando uma língua tem uma norma escrita, a mudança irá desacelerar – a norma é uma força que tende a uniformizar a língua entre os falantes de cada época e, assim, pela lógica exposta acima, acaba por actuar como travão da mudança ao longo do tempo. No entanto, a norma não é um travão a fundo. A língua continua a mudar – e, com ela, a norma. O processo de mudança da norma costuma ser ligeiramente mais consciente e, por vezes, tem cariz político (e muito arbitrário). Já o processo praticamente invisível de constante desbaste e reconstrução das palavras – esse é suave, imperceptível, visível apenas quando olhamos para trás, para os séculos, e percebemos as diferenças nas fotografias tiradas no momento do registo escrito das palavras.
Texto publicado em 9 de agosto de 2020 no blogue Certas Palavras e no livro Almanaque da Língua Portuguesa (Guerra & Paz, 2020). Mantém-se a ortografia de 1945, seguida pelo autor.