« (...) "Português", assim sem mais, como nome de língua, que se saiba, apareceu apenas já bem entrado o século XV. Foi D. Pedro, um ilustre tradutor, infante nas horas vagas, que assim escreveu na introdução à sua tradução do Livro dos Ofícios, de Cícero, dedicada ao seu irmão, D. Duarte, em 1430. (...)»
Quando Portugal se tornou independente, os habitantes do novo reino continuaram a usar a língua que já usavam antes. Esta língua não tinha nome e não era particularmente diferente da língua falada na Galiza. Ninguém considerou necessário declarar qual era o idioma do reino. Dizemos hoje que o latim era oficial, mas esse conceito não existia, pelo menos com a definição que lhe damos hoje. O latim era a língua usada, na escrita, por quem escrevia − que eram poucos.
O reino expandiu-se para sul e, com ele, veio o idioma. No Sul, falava-se ainda latim hispânico já muito mudado e com muitas influências árabes − a língua a que chamamos hoje moçárabe. A língua do Norte era a língua da corte e dos soldados, da administração. A população acabou por moldar o seu latim a esse outro latim, incrustando-lhe umas pepitas moçárabes.
Aquele antigo latim do Norte − a que podemos chamar galécio, galego, portucalense, romance da Galécia ou da Galiza… − ganhou outro sabor, outros sons, algumas outras palavras, um tom ligeiramente diferente ao misturar-se com o latim do Sul, mas não deixou de ser a língua do Noroeste, agora transplantada para Sul, agora falada da Corunha ao Algarve.
Por alturas de D. Dinis, esta língua romance passou a ser usada nos documentos, mas ainda não tinha nome. No final do século XIV, temos revoluções, a batalha de Aljubarrota… A nobreza nortenha perde influência, a burguesia lisboeta alça-se à posição de classe dominante − e tudo o mais que faz parte da História. Lisboa é agora a capital e poucos se lembram de que a língua veio de norte. Mesmo com outras palavras e outro sotaque, nas suas estruturas e características principais, a língua que Portugal assumiu como sua é a língua criada em parte do território da antiga Galécia. Não houve, aliás, um ponto em que o galego e o português se separassem claramente.
Por alturas do reinado de D. Dinis, o romance falado em Portugal começou a ser usado nos documentos oficiais. Ninguém lhe deu nome, no entanto. Aquela era a «linguagem», nome que se dava a essa forma de falar diferente do latim. Começaram a aparecer referências à «linguagem português» (a concordância era peculiar, mas era assim).
«Português», assim sem mais, como nome de língua, que se saiba, apareceu apenas já bem entrado o século XV. Foi D. Pedro, um ilustre tradutor, infante nas horas vagas, que assim escreveu na introdução à sua tradução do Livro dos Ofícios, de Cícero, dedicada ao seu irmão, D. Duarte, em 1430:
«E por que nom sey per que aventuira se acertou que huü livro, que assaz d’annos ha me deu nosso irmãao, o Infante Dom Fernando, o qual Tullio compôs, e chama-se "dos Oficios", em este anno passado tomey afeiçom a leer per elle. E quanto mais liia tanto me parecia melhor e mais virtuoso, e non soomente a mym, mas assy parecia a alguüs outros a que eu liia em portugues alguüs seos capítulos, em tanto que per elles algüas vee[ses] fuy requerido que tornasse este livro em esta linguagem.»
(Uso a transcrição presente no artigo Cícero em Portugal: momentos de humanismo cívico, de Aires Augusto Nascimento. Uma versão levemente actualizada do mesmo extracto encontra-se em Assim Nasceu Uma Língua, livro em que Fernando Venâncio conta esta história.)
D. Pedro, o Infante das Sete Partidas, filho de D. João e de D. Filipa de Lencastre, aventureiro, tradutor, personagem quase mítica da História… Parece ter sido ele quem pela primeira vez escreveu o nome da nossa língua, embora a língua já existisse havia muitos séculos.
Nunca poderemos ter a certeza, pois nada impede que amanhã se descubra um documento mais antigo com o nome do idioma (ou talvez até já esteja neste momento nas mãos de algum estudioso). Aliás, ninguém saberá se não houve documento mais antigo que se perdeu, em que alguém dava nome ao português. Dito isto, D. Pedro não deixa de ser um excelente padrinho para este idioma de um recanto perdido do antigo Império Romano, que depois se espalhou e se misturou pelas sete partidas no mundo.
Texto do autor, transcrito, com devida vénia na página do Facebook Língua e Tradição, com a data de 31 de agosto de 2021. Manteve-se a norma ortográfica de 1945 do original.