«Mais do que incompreensível, é inaceitável, portanto, a repetição de determinados atos falhos por parte das elites políticas e culturais dos dois países autoconsiderados "dominantes" dessa comunidade, ou seja, Portugal e Brasil.»
O conceito de "lusofonia", embora seja prático, é claramente um conceito ambíguo e limitado, que não exprime toda a complexa realidade constituída e vivenciada pelos povos de língua portuguesa. Afinal – já o escrevi aqui – essa comunidade, em termos demográficos, é afro-europeia e não euro-africana. Culturalmente, é cada vez mais mestiça, marcada de maneira distintiva por traços culturais de origem africana.
Mais do que incompreensível, é inaceitável, portanto, a repetição de determinados atos falhos por parte das elites políticas e culturais dos dois países autoconsiderados "dominantes" dessa comunidade, ou seja, Portugal e Brasil. Anos atrás, por exemplo, certas universidades portuguesas tinham departamentos de estudos «lusófonos e portugueses», o que fala por si. Espero que essa designação e outras do mesmo calibre já tenham sido colocadas no caixote do lixo.
O fraco reconhecimento e as dificuldades de circulação na comunidade em questão de bens culturais produzidos nos diferentes países de língua portuguesa são exemplos de uma área em que todas as fragilidades (estou a ser gentil) do conceito de lusofonia saltam à vista. Na coluna de hoje, comentarei brevemente o que se passa na área da literatura, por ser a que melhor conheço.
Começo por mencionar dois factos. Primeiro, o lançamento, no passado dia 9 deste mês de setembro, em Lisboa, da obra Safras de Um Triste Outono, do poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, prémio Camões 2009, publicada pela editora também cabo-verdiana Rosa dos Ventos. Segundo, a premiação da poeta são-tomense Conceição Lima pelo conhecido site internacional de literatura traduzida (para o inglês) Words without Borders, juntamente com três outros poetas mundiais. Nenhum desses dois factos foi notícia em Portugal e no Brasil, onde os respetivos autores são relativamente conhecidos.
A verdade, nua e crua, é esta: pesem os esforços da academia – sobretudo, diga-se, no Brasil – para conhecer e divulgar as literaturas africanas de língua portuguesa, as instâncias que ajudam a constituir o chamado "mercado", isto é, as editoras, os eventos e a imprensa, prestam uma atenção literalmente episódica ao que se produz em tais países. Mais grave ainda: quase sempre, as escolhas dessas instâncias não escondem os seus preconceitos ideológico-culturais, que alguns, nem sempre com razão, mas legitimamente, poderão confundir com fatores étnicos.
Como entender, por exemplo, que o Festival de Poesia de Lisboa não tenha convidado nenhum poeta africano de língua portuguesa realmente conhecido como poeta? Se a maka eram dificuldades logísticas, aí vai uma lista de nomes de poetas africanos que moram na capital portuguesa: o próprio Arménio Vieira, o igualmente cabo-verdiano José Luís Tavares, o moçambicano Luís Patraquim e os angolanos Ana Paula Tavares e Zetho Gonçalves. Certamente haverá outros, que lamento não conhecer.
Outro ato falho foi cometido pelo Prémio Oceanos, alegadamente instituído para galardoar autores de todos os países de língua portuguesa, quando, na sua conta do Instagram, chamou o angolaníssimo José Eduardo Agualusa, semifinalista da edição 2021 do referido prémio, de «escritor português». É como se apenas fizesse sentido que autores portugueses (e brasileiros) fossem dignos do prémio em questão.
Por fim, não podem também ser ignoradas as culpas que têm nesta matéria os próprios países africanos de língua portuguesa. Para resumir com uma frase, direi que, de um modo geral, os mesmos pouco ou nada têm feito para internacionalizar a sua própria literatura.
Este assunto não se esgota aqui. Em próximo artigo, tentarei sugerir algumas ideias para promover um verdadeiro intercâmbio literário entre todos os países de língua portuguesa.
Artigo publicado no Diário de Notícias no dia 28 de setembro de 2021.