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Pelourinho // Mau uso da língua nos media

Sérgio Conceição «teve» bem
no Futebol Clube do Porto?

Autogolos de uma notícia

Muito se tem especulado, nesta época desportiva, se Sérgio Conceição irá bater com a porta e sair do clube que atualmente treina, o Futebol Clube do Porto. A este propósito, no dia 25 de maio, na conferência de imprensa de antevisão da final da Taça de Portugal com o Sporting Clube de Portugal, o treinador dos dragões foi questionado acerca do seu futuro à frente desta equipa portista. O jornal Record transformou esse momento em notícia, citando Conceição. Contudo, foi o jornal que, em vez de bater com a porta como o conhecido treinador, acabou batendo na porta. Veja-se estas duas passagens: «O meu sentimento é que eu tive à altura da exigência do FC Porto»; e «Eu sempre digo, para ter contrato no FC Porto, se o meu caminho e o do FC Porto biforcarem, eu saio com a mesma dignidade com que entrei.» Tropeçamos, portanto, em dois erros:  "tive" e "biforcar", em vez dos corretos estive e bifurcar.

Comecemos pelo primeiro tropeço: a forma verbal "tive", que pressupõe o infinitivo "tar". É um caso em que a oralidade se sobrepôs à escrita, pois é frequente na fala, e a transcrição do discurso de Sérgio Conceição não é exceção, dar-se a redução do verbo estar à forma aferética "tar". Como não devemos recorrer a esta simplificação na escrita, aquilo que, portanto, o redator devia ter escrito era: «O meu sentimento é que eu estive à altura da exigência do FC Porto».

No que respeita a bifurcar, este verbo grafa-se com u, e não com o. Etimologicamente, bifurcar tem origem no latim bifūrcus, a, um, que significa «(relacionado com) forca, pau ou galho dividido em dois» (Dicionário Houaiss). Poderia argumentar-se que "biforcar" deveria aceitar-se porque se relaciona com forca, que tem origem no latim furca, «forca, pau bifurcado», cujo radical furc- se evidencia em bifurcus. Contudo, se forca se atesta desde o século XIII e faz parte do léxico latino que o português recebeu por via popular, bifurcar é palavra mais tardia, entrada por via erudita, razão por que conserva o u original latino.

Concluindo, no jornal Record escreveu-se de ouvido, na encruzilhada do oral com o escrito. Digamos também que quem redigiu a notícia marcou dois autogolos, o primeiro ao usar tive em vez de estive, e o segundo ao usar biforcarem em vez de bifurcarem, «batendo na trave» morfológica e ortograficamente. Fica o lembrete de que é essencial a precisão na palavra escrita, pois escrever implica um ato de responsabilidade para com a língua e para com os leitores.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa